Tataraneto escreve perfil de corintiano que completa 100 anos
Nascido em Itaquera e devoto do Corinthians, ele mora sozinho e, quando não quer cozinhar, pede comida pelo aplicativo
Conheça a história de um trabalhador negro e fanático pelo seu time de futebol, um homem que nasceu quando Itaquera começava a ter os primeiros loteamentos. Ele perdeu os pais cedo, deu duro, subiu na empresa, proporcionou dignidade à família e está firmão, aos cem anos. A festa de aniversário promete ser daquele jeito.
Um morador de Itaquera, na zona leste de São Paulo, completa um século. É Orlando de Souza, que nasceu no dia 7 de fevereiro de 1925, no mesmo mês em que surgiu a Colônia Nipônica de Itaquera, um dos primeiros loteamentos da área.
Orlando nasceu em uma casinha pobre, e enquanto dava os primeiros passos na zona leste, os modernistas da Semana de 1922 faziam seu movimento no centro da cidade. Ele cresceu junto com a Itaquera urbana e periférica do século 20.
Testemunhou a chegada da luz elétrica, do asfalto, o fim do trilho de trem que passava no meio do bairro, a criação do metrô. “Só existia o trem para a gente se locomover. A casa onde eu cresci junto com minha irmã e meu cunhado é uma padaria”.
Orlando, claro, viu a construção dos prédios da Companhia Metropolitana de Habitação (Cohab), ícones arquitetônicos de Itaquera. Presenciou a chegada de nordestinos, outra marca da região, como em São Miguel Paulista, enquanto passou décadas sofrendo e vibrando (garante que é mais vibrando) com seu Corinthians. Até 2023, frequentava estádios.
Órfão cedo, foi morar com a irmã
Com pai e mãe falecidos em curto espaço de tempo, Orlando tinha sete anos quando passou a morar, com seus dois irmãos mais novos, na casa da irmã Josefina e do cunhado Pedro.
Quando começava a escurecer, Orlando esperava Pedro perto do trilho do trem e o acompanhava até em casa. “Tinha uma escola que era na avenida, um pouco longe de onde a gente morava, não tínhamos como estudar”, conta Orlando, que começou a trabalhar aos 14 anos.
Ele se orgulha, particularmente, de ter sido vendedor e empacotador da Lanari, onde permaneceu por 23 anos. “Sabe aqueles prédios bonitos de Brasília? Foi eu e meus colegas que mandamos o ferro. Trabalhava sempre certinho, aí o patrão me escolheu para distribuir o salário”.
Promovido a caixa geral, foi um dos primeiros negros a atuar no setor administrativo da empresa, em frente ao Teatro Municipal. Levava três horas para chegar ao trabalho, de trem. Nunca faltou.
Preto constantemente parado na Ditadura
Durante a Ditadura, Orlando, homem preto adulto, era constantemente abordado por policiais e detetives. Vivia com carteira de trabalho no bolso, para evitar problemas maiores do que as revistas.
“A gente sofria muito. A gente que é negro tem que andar certinho na vida pra não arrumar problema”. Mas a vida teve delícias. Orlando viveu intensamente as noites paulistanas. Colocava sua melhor roupa e saía com amigos e parentes.
“A mana pedia pra gente chegar até meia-noite, mas às vezes os bailes começavam tarde. Aí a gente dava um jeito e entrava escondido pelas janelas, quando ela dormia”. Os rolês eram principalmente em Itaquera, com esticadas para São Miguel, Jundiaí.
Nas quebradas sem energia elétrica dos anos 1940, em plena II Guerra Mundial, Orlando fazia grandes amigos, como Zé Pretinho, de quem foi padrinho de cinco filhos.
Dois grandes amores
Galanteador, Orlando sossegou em 1966 quando conheceu Maria Tereza, para alvoroço da família da moça. “Quando a mãe dela viu ela saindo comigo, ficou muito nervosa. Disse que os malandros de São Paulo e do Rio não prestavam. Ela era do Rio. Mas a Maria enfrentou e a gente continuou se vendo”, lembra Orlando.
Maria tinha uma filha de cinco anos, o casal tentou ter filhos, desistiu. Acumularam afilhados, sobrinhos e outros descendentes, como Isaque Teles, estudante de jornalismo, sobrinho tataraneto. A bisavó do autor deste texto era sobrinha de Orlando – todas as sobrinhas já faleceram.
“Gosto de me vestir bem, colocar o chapéu e sair”
Após seis décadas em Itaquera, Orlando mudou com a esposa para Pirassununga, interior paulista. Foram cuidar da sogra. Desde então, mora na cidade. A sogra morreu, a amada Maria Tereza também, e a enteada.
“Vivi 40 anos lindos ao lado delas. A gente nunca brigou. Elas eram boas comigo e me apoiavam bastante. Eu fui muito feliz, e elas foram muito felizes comigo”. Hoje morando sozinho, tranquilo, saudável, faz sua própria comida. Quando não quer cozinhar, pede pelo aplicativo.
E volta sempre para fazer visitas em Itaquera, inúmeras e nunca suficientes, porque a família é enorme, não dá para ver todos de uma só vez. Boa parte deles, entretanto, estarão em um só lugar para a festa do centenário de Orlando, com samba ao vivo, comida e bebida à vontade.