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Grupo de balé de projeto social empodera meninas negras

No PAC (Projetos Amigos das Crianças), crianças e adolescentes negras são protagonistas em aulas e apresentações

26 jan 2022 - 10h01
(atualizado às 11h47)
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Foto: Daniel Arroyo/Ponte

Os cachinhos de Ana Julia Ferreira, 8 anos, pulavam para cima e para baixo toda vez que ela descia as escadas para beber água e aferir o nível de glicose no aparelho fixado no braço pequeno. De collant preto, saia rosa, sapatilhas pretas e um sorriso pelos olhos que a máscara não conseguia cobrir, não continha as duas semanas de espera. “É muita ansiedade”, riu, de forma tímida. Ela aguardava a primeira aula de balé de 2022, em 11 de janeiro, depois de ter conseguido uma vaga em meados de agosto de 2021 para participar das atividades oferecidas pelo PAC (Projetos Amigos das Crianças), organização da sociedade civil que atende famílias em vulnerabilidade social na região de Pirituba, na periferia da zona norte da cidade de São Paulo.

Incentivada pela prima Gabriele Oliveira, 14, que frequenta as aulas há quatro anos, ela conta que adora estar com as amigas e com a professora. “É muito legal, a professora é muito engraçada, eu me divirto muito”, diz. Já Gabriele, que deixou os cabelos crespos livres e estava vestida como Ana, não conseguia segurar o conforto que era estar junto com as meninas. “Adoro crianças, quero ser pediatra, agora que eu terminei o 9º ano vai ser mais puxado, mas eu quero continuar com a dança”, afirma. Enquanto isso, algumas das crianças se arrumavam em frente à penteadeira, passavam sombra nos olhos ou brincavam.

Foto: Daniel Arroyo/Ponte

Pelo menos 20 meninas, a maioria negras, entre seis e 14 anos, se revezavam em turmas para as aulas que acontecem duas vezes por semana, pelo período de uma hora. A professora Alcione Brasílio, 45, se virava entre enfeitar os cabelos de umas, ver se a meia calça de outra estava correta, checar o aparelho de som e orientar os passos. “Olha o pézinho, plié, muito bom!”, conduzia. 

Desde os 13 anos, Alcione colocou em prática um sonho da mãe de ser bailarina. Começou em uma academia e também atuou no Theatro Municipal, mas decidiu incorporar nas aulas um entendimento sobre o racismo que só compreendeu muito mais tarde.

“Você percebeu que eu falo para as meninas não prenderem o cabelo, para elas dançarem livres, porque o balé é muito rígido. Imagine fazer um coque perfeito em um cabelo crespo? O elástico estourava, eu tinha que sair da aula”, lembra.

Foto: Daniel Arroyo/Ponte

Há nove anos ela ministra aulas no PAC para ao menos 180 alunas. “Por muitos anos, uma menina negra não podia ter papel principal, muitas vezes eu fazia solo quando as meninas brancas faltavam, mas não poderia ser uma princesa porque não existia princesa negra e isso está se quebrando aos poucos, com movimentos como o da Ingrid Silva [bailarina clássica brasileira que ficou conhecida por pintar as sapatilhas da cor da sua pele e que se apresenta no Dance Theatre of Harlem em Nova York]”.

Além das aulas de balé clássico, que são direcionadas para as crianças e adolescentes acompanhadas pelo SASF (Serviço de Assistência Social à Família e Proteção Social Básica no Domicílio) e monitoradas pelo Cras (Centro de Referência de Assistência Social) da Prefeitura de São Paulo, Alcione também abriu uma turma específica para meninas negras, há um ano, chamado Balé Ayo. Ao invés do rosa, as cores dos figurinos são vermelho, preto e amarelo radiantes em estampas que remetem a desenhos africanos.

Foto: Daniel Arroyo/Ponte

“Ayo [em nigeriano] é felicidade e é isso que a gente sente aqui”, descreve Samily Arcadi, 15, que faz as aulas de balé no PAC há sete anos. “Em muitos balés clássicos, a gente só vê aquele padrão de coque, de menina branca, raramente a gente vê negras e a ideia que a professora trouxe foi de a gente representar as meninas negras, com nossos cabelos crespos, usar eles soltos, presos, como a gente quiser e se sentir bem”, explica. 

“A gente não precisa ter vergonha da nossa pele”, assente Thawany Cristina, 15, que participa do projeto há seis anos e, naquela aula, tinha dado vários jetés, aquele salto em que a bailarina estica bem as pernas no ar.

“O Balé Ayo trouxe muitas oportunidades que a gente não tinha antes e não teria a oportunidade de ter porque uma aula é cara, uma sapatilha de qualidade é muito cara”, comentou ao lembrar da apresentação que o grupo fez em novembro, no Memorial da América Latina. Todos os itens, do uniforme à presilha de cabelo, são fornecidos pelo projeto e por meio de doações. “A gente também tem o compromisso de passar aquilo que não serve para as meninas menores, para ter uma continuidade”, diz Thawany.

Foto: Daniel Arroyo/Ponte

Um dos principais pontos que elas trazem é a cumplicidade. “Se uma não está bem, a gente já sabe, já conversa e se apoia, porque tudo que a gente sente se reflete na dança”, destaca Thawany, que sonha em seguir carreira na dança.

“Quero continuar dançando, mas também quero continuar estudando, fazer uma faculdade de Administração, trabalhar depois e não desistir porque tem momentos em que a gente pensa em largar tudo, mas a professora incentiva a gente a não deixar esses momentos ruins tomarem conta”, prossegue.

“É um refúgio a dança”, completa Samily. “É muito bom poder fazer uma coisa que você não é obrigado a fazer, mas faz porque gosta, aqui eu estou interagindo, rindo, brincando, tem momentos de briga, mas a gente se apoia”. Para ela, faltam mais espaços que ofereçam oportunidades para os moradores. “O bairro é muito desvalorizado, nem as pessoas que moram aqui acreditam no potencial”. Samily sonha em ser advogada.

O maior desafio, segundo a idealizadora do PAC, a empreendedora social Rosane Chene, foi a pandemia. “A gente teve que fechar as atividades no começo, mas foi desesperador ver que as crianças ficavam na rua porque na favela não existe isolamento”, pontua. “Então, além da entrega de alimentação para as famílias, quando pudemos, abrimos de novo, mas com uma capacidade menor e alternando turmas”, explica.

Apesar de o corpo de balé ser mais recente, o projeto tem 18 anos e conta com diversas atividades que vão de complementação escolar, com aulas de reforço e de inglês, tanto para crianças e jovens como adultos, a inclusão digital, cursos profissionalizantes, aulas de futebol e judô, além de centros de acolhimento voltados para crianças e adolescentes.

Foto: Daniel Arroyo/Ponte

“O nosso papel é trazer referências para que elas se conectem e sejam protagonistas da própria história porque muitas vezes elas não encontram essas figuras, seja por estarem em situação de violência doméstica, de drogadição, de pobreza”, pontua Rosane.

“São momentos pequenos que a gente percebe essa conexão”, analisa Alcione. “É o encantamento de estar diante de uma penteadeira, colocar uma roupa de balé e se sentir linda, pentear o cabelo, brincar com as fantasias e é muito emocionante para mim ver que elas buscam ter uma profissão, estudar, que elas estão se empoderando porque eu não quero que elas passem pelo sofrimento que eu passei”.  

“Existe um pensamento de generosidade de ‘separe as roupas que você não quer para doar para os mais pobres’ e não é isso que a gente tem que fazer, de deixar sempre o resto para quem não tem”, complementa Rosane. “É dar oportunidade, dar o melhor, para que aquela criança cresça, seja autônoma e veja para além dos muros que a falta de políticas públicas coloca”.

Ponte
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