Literatura periférica é realidade em concursos e vestibulares
Explicação pode estar em docentes que levam escrita da favela às salas de aula, furando a bolha de listas oficiais
A presença de literatura periférica escrita por mulheres e homens vem aparecendo em vestibulares e concursos. O processo começa nas salas de aula de escolas públicas de periferia, com docentes que tomam iniciativas isoladas, mas fundamentais. Neste ano, duas universidades federais, de Curitiba e Roraima, incluíram literatura periférica nas listas de obras obrigatórias. A censura ao livro O Avesso da Pele, de Jeferson Tenório, não abala o processo de inserção institucional da literatura periférica.
A literatura marginal não tomou a cena de vestibulares e concursos, mas já caiu pra dentro. Vão pipocando exemplos em listas de obras obrigatórias de universidades, enquanto em Guaratinguetá, interior paulista, 9 das 10 questões do concurso para telefonista foram sobre o escritor periférico Wesley Barbosa.
No sapatinho, a literatura de quebrada adentra escolas públicas de periferia, concursos e vestibulares, constando ou não em listas oficiais. Na sala de aula, chega por iniciativa de professores, independente do Programa Nacional do Livro e do Material Didático.
A presença parece ser suficiente para manter a literatura de periferia com os pés fincado no território que conquistou. As reações contrárias não conseguem segurar a infiltração, e rendem dividendos. Censurado, o livro O Avesso da Pele, de Jeferson Tenório, vendeu 1400% a mais na Amazon.
Equilibrando distorções, a Universidade de São Paulo acaba de anunciar a lista obrigatória de literatura para 2026, só com mulheres. Entre elas, pelo menos duas são oriundas e identificadas com as periferias.
E recentemente, duas universidades federais incluíram obras de literatura periférica como leitura obrigatória.
Duas federais passam a cobrar literatura periférica
Quem prestar o próximo vestibular na Universidade Federal do Paraná (UFPR) terá que ler O Sol na Cabeça, de Geovani Martins. O autor carioca estreia em lista oficial. Entre as oito obras obrigatórias, a UFPR manteve Quarto de Despejo, de Carolina Maria de Jesus.
“A gente está no centro da literatura brasileira, pensando em público atingido, presença em eventos, vestibulares, pautando várias discussões”, diz Geovani Martins. O “pautando” se refere ao livro O Avesso da Pele, censurado no Rio de Grande do Sul.
A Universidade Federal de Roraima (UFRR) passa a cobrar Onde Estaes Felicidade, de Carolina Maria de Jesus, livro literário e teórico. “É o que mais vende nas feiras, mas foi uma surpresa”, conta Dinha, poeta, fundadora da Edições Me Parió Revolução, que organizou a obra, também disponível para baixar gratuitamente.
Moradora do Jardim Savério, zona sul de São Paulo, Dinha é Maria Nilda de Carvalho Mota. Autora de cinco livros, editora, pós-doutora, mãe, fundou com outras manas o selo editorial que se define como negro, feminino, independente e periférico.
“Não li o livro censurado do Jeferson Tenório, mas suspeito que, se tivesse na sala de aula, teria colocado na prateleira da honra”, diz Dinha.
Fortes sinais de literatura marginal
No final do ano passado, o escritor Wesley Barbosa ficou surpreso ao saber que um trecho de reportagem sobre sua trajetória virou questão de concurso para a prefeitura da Instância Turística de Guaratinguetá.
Na prova para telefonista preparada pela Fundação Vunesp, nove das dez questões eram sobre o autor de Viela Ensanguentada. “A literatura marginal já conquistou o coração de leitores de todo o Brasil e até do mundo. Não há como segurar ou esconder isso”, diz Wesley Barbosa.
Ainda no ano passado, o vestibular da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM) fez uma questão sobre crônica de José Falero, escritor de periferia, do Rio Grande do Sul.
“Não consigo deixar de achar curioso o fato de um texto meu ser usado no vestibular, sendo que terminei o ensino médio via EJA há cerca de um ano”, escreveu – EJA é Educação de Jovens e Adultos, para quem não concluiu a escola na juventude. Falero tem 37 anos.
Para ele, os extremos do fracasso e do sucesso são falsos, mas o autor ficou feliz em aparecer no vestibular da UFVJM. “Pessoas sérias, que entendem de literatura, estão usando meu material. Não é só reconhecimento, é legitimação”, diz Falero.
Sobre a proibição do livro de seu amigo Jeferson Tenório, “a coisa mais importante a pensar que ele é um cara preto. Não é só censura do livro, é racismo”, pontua.
Não só de Racionais vive a Unicamp
Após a inclusão do Racionais no vestibular da Unicamp, em 2020, a Universidade de Campinas fez duas questões sobre as músicas. O disco Sobrevivendo no Inferno está na categoria de poesia na lista obrigatória.
A poeta Luz Ribeiro, do Slam das Minas, em São Paulo, também apareceu duas vezes no vestibular da Unicamp, em 2021 e no ano passado. Os poemas foram lapidados em batalhas de rimas.
“A surpresa é saber que entro no vestibular de novo, que não sou poeta de um poema só. É sinal de que estão lendo. A gente chega nos lugares. Um dia, uma preta apanhando num pau de arara e sonhou que uma descente ia chegar no vestibular”, diz Luz Ribeiro.
Literatura periférica em sala de aula
A proibição de O Avesso da Pele em uma escola do Rio Grande do Sul não interfere na chegada da literatura das periferias às salas de aula.
Autoras e autores ouvidos nesta reportagem são unânimes sobre a importância de iniciativas docentes na divulgação de suas obras. “Na maior parte das vezes, são professores da quebrada”, diz José Falero.
Um exemplo é o da professora Flor Guedes na escola pública Maria Catharina Comino, em uma quebrada de Taboão da Serra, Região Metropolitana de São Paulo.
Em 2022, com apoio da diretora, foram comprados 40 exemplares de Viela Ensanguentada, de Wesley Barbosa. A professora levava os livros de sala em sala, em uma cesta. Eram sete turmas de ensino médio, cerca de 240 estudantes.
As leituras aconteciam no começo das aulas, mas foram transferidas para o final. “Eles não queriam parar de ler. Davam risada, fotografavam, postavam trechos no Instagram, entraram em contato com o autor”, conta.
Wesley Barbosa foi na escola. Houve um segundo encontro no Sarau da Cooperifa. Estudantes compraram o livro, ganharam autógrafos, tiraram fotos.
“Serviu para prevenir o que aconteceu com o livro O Avesso da Pele, de Jeferson Tenório. Uma das coisas que mais atraiu foi a linguagem, tem uns palavrõezinhos”, conta, rindo, Flor Guedes.