Maconha no STF: como samba, rap e funk acenderam a discussão
Samba e rap foram introduzindo o tema da maconha com cautela em suas letras e clipes. Funk escancarou o assunto
Com o fim da ditadura militar, Bezerra da Silva abordou a maconha malandramente, com gírias. O rap demorou para tratar do tabu, a exemplo do grupo Racionais MCs. Faz pouco tempo que seus integrantes aparecem em vídeos fumando baseados. O funk chegou com o terreno pronto e fértil e se sente à vontade para escancarar o assunto.
Enquanto o Supremo Tribunal Federal discute, lentamente, a descriminalização do porte de maconha para uso pessoal, é comum ver gente fumando em clipes de funk e rappers fazendo vídeos com baseados entre os dedos. Mas, no mundo da música de quebrada, incluindo o samba, nem sempre foi assim.
A referência à erva veio aparecendo devagar, com cuidado, no sapatinho. Quem é da periferia sabe que maconha dá cadeia ou coisa pior. Depois da ditadura militar, Bezerra da Silva pautou o tema em 1996.
No disco “Alô Malandragem, Maloca o Flagrante!”, a referência à maconha está codificada em gíria. Ela é o “flagrante”. Bezerra canta que, com os homens da lei chegando, “não vai dar pra dividida/ Esconde a muamba e sai batido/ Quando o malandro é de verdade/ Na briga não gosta de sair ferido”.
No mesmo disco, na famosa “Malandragem dá um Tempo”, o refrão “vou apertar, mas não vou acender agora” é para iniciados, na época. Hoje, se alguém ainda não sabe, “apertar” significa fazer um cigarro de maconha. Bezerra ainda salpica “fazer a cabeça” e “boca”. E, no refrão, pontuado e quase perdido entre o coro feminino, cita “manga rosa” e “cabeça de nego”, tipos de erva, e “baseado”.
Planet Hemp queria legalizar
Uma década depois de Bezerra da Silva, o Planet Hemp meteu o pé na porta. A sociedade estava menos preparada do que hoje para posicionamentos tão explícitos a favor da legalização da maconha. Os músicos tiveram shows cancelados, numa escalada que os levou à prisão. Era novembro de 1997.
No mês seguinte, Racionais MCs lança o histórico “Sobrevivendo no Inferno”. Assim como nos discos anteriores, drogas continuam sendo um problema. Mas, no disco seguinte, há um verso, somente um, emblemático.
Foi a primeira vez que uma música do Racionais fez afirmação direta sobre uso de maconha, em “parei para fumar um de remédio”. Ao que parece, não se trata de uso recreativo, mas terapêutico. E ficou nisso, no referido disco.
Cinco anos depois, em 2007, em entrevista ao Roda Viva, Mano Brown é questionado sobre drogas. Ele responde que “o cara que comercializa cocaína, vamos dizer assim já abertamente, que vende a maconha, ou qualquer outro tipo de droga, é um comerciante como qualquer outro”.
Os entrevistadores enquadram o rapper: você é a favor da legalização? Ele se esquiva com “não sou a favor de nada”. Porém, com o advento das redes sociais, vira e mexe rola um vídeo em que não só os membros do Racionais aparecem com o baseadão em mãos.
É uma saída estratégica: sem correr o risco de prisão, sem dizer abertamente, o baseado é cada vez mais onipresente. A cautela em escancarar o uso evitou mais um estigma para a música de periferia, de preto, maloqueiro, presidiário, do povão.
Funk e fumaça andam juntos
Citar artistas de funk e obras pontuais que abordam maconha abertamente geraria uma lista interminável. Isso demonstra o quanto o estilo musical chegou com terreno preparado para a maconha pela música de quebrada que o precedeu. A erva está em nomes de música, em letras inteiras, e baseados aparecem nos clipes e shows de funk com naturalidade.
Até chegar ao ponto de Ludmilla cantar “Verdinha”, com clipe em plantação e fumaça neblinando o ar, houve um processo lento, apesar do barato ter sido louco. Ela gravou também “Onda Diferente”, com Anitta e Snoop Dog, tendo a planta como cenário do clipe. Não é uma imagem meramente ilustrativa, mas parte de um processo que vai abrindo lentamente a possibilidade de se expressar com cada vez mais veemência.
No mundo das pessoas que curtem som de quebrada, a decisão do Supremo Tribunal Federal importa pouco. Para rappers e funkeiros, e até para alguns sambistas, a maconha está legalizada em letras e clipes.