“Andei doze dias e doze noites até o Irã”, conta refugiado
Militar afegão fugiu para o Brasil quando o talibã tomou o poder. No mesmo abrigo, jornalista tenta reconstruir a vida
Refugiado é a pessoa forçada a deixar seu país de origem em função de conflitos ou perseguições. A história de dois homens que moram em um abrigo na periferia de Guarulhos (SP) mostra a saga dos refugiados, homenageados pelas Nações Unidas com o Dia Mundial do Refugiado, comemorado em 20 de junho. O tema de 2024 é a mudança climática como causa de deslocamentos forçados.
Ao procurar histórias para contar no Dia Mundial do Refugiado, comemorado em 20 de junho, o Visão do Corre visitou o Acolhimento Transitório para Pessoas Migrantes e Refugiados Povos Fraternos, em Guarulhos. Mas apenas duas das 70 pessoas acolhidas toparam dar entrevista.
A maioria tem medo do talibã, pois seus familiares ainda estão no Afeganistão. Por isso, nesta reportagem não há fotos identificando refugiados. Encontramos o primeiro deles na secretaria do projeto de acolhimento, localizado no Residencial Parque Cumbica, na periferia de Guarulhos.
Com ajuda de intérprete voluntário, conseguimos nos comunicar em persa e português com um homem de postura ereta e expressões sérias, que aceita contar sua história.
Abdul Salim Latifi tem 32 anos. Era comandante do exército afegão. Depois que o talibã tomou o poder, teve que fugir. Abdul está no Brasil há apenas dois meses e não fala português.
“O idioma é a grande dificuldade, tanto para adaptação, quanto para conseguir emprego”. Sua maior preocupação, no entanto, é com a esposa e o filho, de apenas um ano, que ficaram para trás, no Irã.
“Quando vim, as pessoas do consulado disseram que em alguns dias minha família viria, mas já se passaram dois meses”.
Talibã toma o poder e Abdul foge
O ex-comandante conta que, com a saída dos Estados Unidos do Afeganistão, em poucos dias o talibã assumiu o poder e “as pessoas perderam seus carros, casas, empregos e autonomia. Inclusive eu e minha família”.
Os fundamentalistas passaram a caçar os militares do antigo governo. Uma das ações atingiu Abdul diretamente. “Bombardearam meu carro enquanto estava fazendo patrulha, fiquei muito ferido”.
Era a vingança aos infiéis, segundo interpretação talibã das leis islâmicas da sharia. “Andei doze dias e doze noites até o Irã com a minha família e fiquei no país de forma ilegal por um tempo”, conta o homem que está há dois anos fugindo.
Visto legal obtido de forma ilegal
Sobre a fuga, Abdul indigna-se com a corrupção dos soldados iranianos que pediram algumas centenas de dólares para concederem vistos.
A coordenadora do projeto Povos Fraternos conta que o relato desse tipo de corrupção é recorrente entre refugiados. “É um golpe que se aproveita da situação de desespero”, diz Luiza Marins, 22 anos.
Abdul fala com a sua família diariamente pelo celular. Mostra fotos com a esposa e o filho e está disposto a voltar ao Irã, caso a família não chegue logo ao Brasil.
O jornalista censurado
Desta vez, quem traduz a conversa é uma afegã de 39 anos. Conversamos com Aminullah Azizyan, 30 anos, afegão. Ele era jornalista e professor universitário de inglês na Universidade de Defesa Nacional Marshal Fahim.
Chegou à Guarulhos com esposa filho pequeno e está abrigado na unidade que atende núcleos familiares no projeto Povos Fraternos. Ele está vendo o Brasil como um novo capítulo para família. Mas, caso as coisas voltem ao normal, está disposto a voltar ao Afeganistão.
Família não precisou pagar propina
Aminullah fazia reportagens para um canal do Youtube chamado Kavesh 24. Mas não podia falar tudo sobre o cotidiano afegão, pois “o Talibã me fez assinar um tipo de contratado, eu não poderia falar mal do governo, se não ia sofrer as consequências”.
E sofreu. Após censura, para evitar problemas, acatou as ordem. “Uma das coisas que mais gosto no Brasil é a liberdade de expressão”. Aminullah esperou dois anos até conseguir o visto.
Na trajetória até o Brasil, não teve que pagar para obter documentos. Mas ouviu de muitos colegas os relatos de corrupção.
Entre as mudanças que mais o incomodam no Afeganistão do talibã está a perda de liberdade e dos direitos da mulher. “Eu sentia muito a minha mulher não poder sair de casa comigo”.
No Brasil, ela pode. Professor de idioma no Afeganistão, Aminullah agora frequenta aulas de português e batalha para conseguir emprego.