Cantora autista do Grajaú cria canal para cantar e conversar
Jovem, mulher e negra, Vanessa Black começou a carreira artística após o incentivo de um médico durante uma consulta no CAPS
“A música é o que me traz conforto e segurança. É o que me faz ser quem eu realmente sou”, conta a cantora independente Vanessa Cristina Tarcílio Nunes, 21. Moradora do Grajaú, na zona sul de São Paulo, ela mantém o canal “Minha Vida Sendo Autista” no YouTube desde fevereiro de 2022 em que relata vivências pessoais como mulher negra e autista.
Vanessa recebeu o diagnóstico de TEA (Transtorno do Espectro Autista) de forma tardia, aos 14 anos. Após passar por uma crise nervosa (chamada de “meltdown”) dentro da sala de aula, uma professora detectou que ela precisava de ajuda profissional.
Em momentos assim, crianças ou adolescentes com autismo passam por uma espécie de colapso no qual perdem a capacidade de gerenciar as próprias emoções e sentimentos, chegando a apresentar comportamentos impulsivos. “Comecei a me bater e a chorar. Foi quando a professora me ajudou”, lembra a artista.
O diagnóstico médico foi dado com base nos sintomas e comportamentos. Para a jovem, saber desta condição foi fundamental para que ela entendesse o lugar no mundo, já que sofria bullying e se sentia excluída pelos colegas de classe sem saber o motivo.
“Eles diziam que eu era esquisita e sempre acreditei que eu era um problema”, relata.
Foi durante uma das consultas no CAPS (Centro de Atenção Psicossocial) de Parelheiros, na zona sul, que Vanessa tocou um instrumento musical pela primeira vez. Entre uma consulta e outra, ela gostava de mexer em um teclado que ficava na unidade.
Em 2015, um dos médicos do local a viu tocando e a aconselhou a investir na música. “Ele me disse: ‘você tem talento para isso. Já tentou cantar rap? Acho que sua voz combina com esse tipo de música’”, lembra.
Vanessa nunca havia escutado o gênero até aquele momento e passou a pesquisar sobre o assunto. Logo, as canções de bandas como Racionais Mc's e Facção Central se tornaram as inspirações para que ela começasse a compor as próprias letras.
“O rap é um ritmo que gosto porque fala sobre a nossa realidade na periferia”, reflete. Ela também admira artistas que tocam rock e MPB (Música Popular Brasileira), como Charlie Brown Jr., Legião Urbana e Elis Regina.
Assim ‘nasce’ a Vanessa Black
Para começar a carreira, mesmo que de forma independente, a jovem precisava pensar em um nome artístico. Decidiu ser chamada dali em diante por Vanessa Black, por conta dos cabelos crespos e em homenagem à cor da pele.
A artista afirma que já compôs mais de mil letras em cadernos que ganhou da época da escola. Quando toca o violão, que tem apenas duas cordas, ela esquece dos problemas do cotidiano e ressalta que cantar é mais fácil do que conversar normalmente.
Uma das letras favoritas é a música de nº 961, chamada “Perdida na Multidão”. A letra diz: “Uma garota perdida no meio da multidão. Onde ela está? Onde ela quer chegar? [...] Ela é preta, ela é rap. Ela desenha, canta e dança. Ela ama, mas é tão calada”.
Vanessa conta que a música foi essencial para conquistar a autoestima, mas também a acompanhou nos momentos mais difíceis da vida. Em julho de 2021, o pai, que enfrentava o alcoolismo, desapareceu sem deixar notícias. Dois meses depois, foi encontrado morto por cirrose no IML (Instituto Médico Legal) aos 66 anos.
“Aquele foi um dos momentos mais tristes da minha vida e pensei em desistir de tudo. Até rasguei algumas composições do caderno. Mas depois pensei que a música sempre foi uma válvula de escape e não poderia ser diferente dessa vez”, analisa a jovem.
Naquele mesmo ano, ela deixou de fazer as consultas em Parelheiros e agora frequenta a UBS (Unidade Básica de Saúde) Cantinho do Céu, no Grajaú. O pai trabalhava com jardinagem e era responsável pela renda da família. Com a morte, Vanessa enfrentou momentos delicados quando não havia remédios disponíveis para o tratamento.
“Dependo totalmente do SUS. Cada caixinha [de remédio] custa R$ 80 e não tenho condições de comprar quando está em falta”, afirma. A mãe dela, Eva, de 54 anos, trabalha como catadora de recicláveis e Vanessa ajuda na renda da casa com os shows que faz.
Os shows mais frequentes ocorrem nas regiões do Grajaú e Santo Amaro, também na zona sul, mas a artista também já se apresentou na rua Oscar Freire, localizada no centro de São Paulo, e em um evento da USP (Universidade de São Paulo), na Cidade Universitária, zona oeste.
A cantora diz que ainda sofre com a falta de diversidade quando é chamada para eventos na região onde mora, já que na maioria das vezes ela é a única mulher negra presente nesses espaços.
“Por tocar músicas de rap e de rock, os ambientes ainda são predominantemente masculinos. Fico triste”, desabafa a artista, que se apresenta com covers e músicas autorais no repertório.
Para o futuro, ela expressa a vontade de gravar o primeiro álbum e se tornar atriz. Em novembro de 2020, participou pela primeira vez de uma peça de teatro através de uma capacitação promovida pelo Centro Cultural Grajaú, da Prefeitura.
Ela foi a protagonista da obra Antígona, uma tragédia grega de Sófocles, escrita por volta de 442 A.C. “Só a arte me liberta”, conclui Vanessa.