Débora Silva: De mãe em luta e luto a atriz premiada
Fundadora das Mães de Maio venceu o prêmio de Melhor Atriz Coadjuvante no Festival de Málaga pelo papel no filme 'A Mãe'
A busca incessante de uma mãe por justiça e punição para os assassinos do seu filho, que teria sido morto brutalmente por policiais, em uma onda de ataques violentos em periferias do estado de São Paulo, em 2006. Esta não é a história do filme 'A Mãe', de Cristiano Burlan, mas a de Débora Maria da Silva, fundadora do movimento Mães de Maio, que conta parte da sua história na obra do diretor gaúcho.
Por sua participação no longa, que ainda estreará no Brasil, Débora, líder do Movimento Independente Mães de Maio e ativista de Direitos Humanos, de 62 anos, recebeu em 26 de março o prêmio de melhor atriz coadjuvante no Festival de Cinema de Málaga, na Espanha.
Em seu filme, Burlan conta a saga de Maria, interpretada pela atriz Marcélia Cartaxo, mulher nascida no Nordeste, que trabalha como camelô na capital paulista e vive em um bairro periférico da cidade. Depois de um dia de labuta, ela volta para casa e seu filho Valdo está desaparecido. Sozinha, ela sai em busca do jovem e é informada por um traficante da comunidade que o rapaz foi morto pela polícia. Daí em diante, ela entra em uma cruzada em busca de respostas sobre o crime.
O ficcional drama de Maria se parece com a história real de Débora e de tantas outras mulheres que criam seus filhos em subúrbios das grandes cidades do país. Inclusive se assemelha com o que aconteceu com a própria mãe do diretor. Em 2001, Cristiano teve um irmão assassinado por um esquadrão da morte, comandado por policiais militares de SP, com sete tiros nas costas.
“O cinema não dá conta de contar a realidade. Mesmo que seja uma documentário, não é possível trazer todas as subjetividades e nuances que acontecem em tragédias como essa. Esses casos atravessam a minha história como alguém que cresceu em bairro da periferia onde há ausência do poder público e domínio de um poder paralelo ao Estado”, explica Burlan.
Além de um filme sobre a morte do irmão (Mataram Meu Irmão, de 2013), fez Elegia de Um Crime (2018), obra sobre o feminicídio sofrido por sua mãe, morta pelo companheiro, e Construção (2006), que aborda a morte do pai, no que o diretor chama de trilogia do luto.
Em 'A Mãe', Débora interpreta a si mesma. Em dado momento do filme, a protagonista, em busca de seu filho, encontra as Mães de Maio e sua fundadora. Por este momento do enredo, o júri do Festival de Málaga escolheu a ativista como melhor atriz.
“A gente não sabe o que se passa na cabeça de um jurado. Mas acredito que, por ser um festival latinoamericano de cinema, com jurados latinos, essas histórias de mães que perdem filhos para a violência de estado acabam sendo comum por todo o continente e sempre nos comove”, comenta Cristiano Burlan, que chegou até o grupo que Débora lidera durante a pesquisa para escrever o roteiro.
“O Cristiano foi muito importante para que eu me soltasse durante as cenas. Demorou muito para gravar uma delas, mas depois de um toque que ele me deu sobre a forma que eu deveria falar, saiu tudo de uma forma mais fácil”, conta Débora.
A ativista ainda não teve a oportunidade de ver o filme, mas se diz feliz e surpresa de ter sido reconhecida por seu trabalho em frente às câmeras. Por passar a mensagem no filme de sua luta diária, Débora diz que esse prêmio também é resultado da sua luta junto com as outras mães que perderam seus filhos de forma violenta para o braço armado do Estado.
“Tudo isso vem da luta. A gente não deixa que nossos filhos morram. Os nossos mortos têm voz. Todos os filhos que deixaram suas mães por conta da violência policial gritam ali no filme. Tudo que acontece, acontece por conta deles. É por conta dessas pessoas que a gente está ganhando esse prêmio. Que não é só meu, mas de todas as mães”, enfatiza Débora.
Daria um filme
Pernambucana, Débora fez a vida na Baixada Santista depois que os pais deixaram o estado nordestino e chegaram ao litoral paulista depois de uma longa e turbulenta viagem de barco, no início da década de 1960. O deslocamento pelo mar foi o primeiro dos muitos desafios que a família enfrentaria.
“Meus pais contavam que muitas crianças que estavam no barco adoeceram e até morreram por conta do frio que fazia noite no navio”, relembra ela, que cresceu na periferia da cidade de São Vicente, com uma vida muito pobre e uma criação muito conservadora por conta do pai, que fazia parte de uma igreja evangélica.
“Meu pai era pedreiro e construiu uma porção de casas na região que existem até hoje. Então, eu e meus irmãos aprendemos a lida da construção com ele, porque muitas vezes trabalhamos virando concreto e batendo tijolo auxiliando ele”, conta Débora, que teve seu primeiro emprego com carteira assinada aos 14 anos, como empacotadora em uma fábrica de macarrão.
Aos 19 anos, foi mãe pela primeira vez. Rogério, seu filho mais velho, ocuparia um enorme espaço na vida mãe. Atualmente, a sua ausência toma grande parte de toda a saudade que sente dele, ao mesmo tempo em que foi a partir de sua morte que Débora passou a se dedicar integralmente à luta de mães que querem justiça e esclarecimento sobre a morte de seus filhos pelas mãos do Estado.
“Rogério era uma mala (risos). Menino afetuoso, carinhoso e muitas vezes até mimado demais. Eu fazia tudo por ele e ajudei com tudo o que pude”, lembra, com saudade, Débora. O filho foi morto durante uma série de homicídios em bairros periféricos de Santos, litoral de São Paulo, em maio de 2006. Grande parte dos ataques foram promovidos por policiais em resposta aos ataques violentos a prédios públicos comandados pelo Primeiro Comando da Capital (PCC), os chamados Crimes de Maio.
A partir desse evento trágico, a vida de Débora Silva passou a ser a luta por justiça, junto com outras mães, para obter respostas do poder público sobre as mortes promovidas pela polícia.
“Depois do nosso movimento, ajudamos a criar outras iniciativas pelo Brasil de pessoas que passaram pelo mesmo que nós passamos. Seja aqui na Baixada Santista, na zona leste, em Osasco, no Rio de Janeiro, na Bahia. E tivemos algumas conquistas. Hoje, ninguém mais lembra daquele episódio como os ataques do PCC. Nossos filhos não eram bandidos. Conseguimos mudar a narrativa. Hoje as pessoas se referem aquele período pelo nome certo, que foram os Crimes de Maio”.