Do Carandiru à periferia: Sophia leva ioga para lajes de SP
Associação fundada por atriz e professora que atuou no Complexo do Carandiru leva ioga, dança, circo, futebol e alimento às periferias de SP
“Sophia, como é que faz mesmo?”, perguntava uma das alunas sob um sol que marcava os 26 graus, por volta das 11h35 de um domingo. Ao fundo, a maioria dos carros que passavam pela rua tocavam um funk estralando. Na laje cedida pela associação Periferia Ativa, na rua Adoasto de Godói, na região do Capão Redondo, zona sul da capital paulista, as que chegavam atrasadas com seus tapetes de ioga coloridos recebiam a bronca em tom de brincadeira: “olha aí!”. E arrumavam espaço entre as colegas. Das sete que estavam no início, a aula dobrou para 14. Os comandos da atriz e professora Sophia Bisilliat, de 58 anos, que orientava os movimentos, às vezes se misturava com as músicas de Simone e Simaria que tocavam na casa vizinha, enquanto levantava para corrigir as posições das demais. “Puxa a mão esquerda por trás das costas, com peito aberto, vamos, vocês conseguem!”, estimulava.
Há três anos, Sophia fundou a Associação Treino na Laje, que leva aulas de ioga, dança, circo e futebol nas periferias de São Paulo. São sete lajes que recebem os treinos e cerca de 22 comunidades atendidas com as demais atividades, além de distribuição de cestas básicas e oferecimento de lanches na região da Luz, no centro da cidade, conhecida pejorativamente como Cracolândia.
“Vir para cá me trouxe uma energia de renovação que eu tinha quando atuava no Carandiru”, conta ao lembrar dos 20 anos em que trabalhou dando oficinas de teatro na extinta Casa de Detenção do Carandiru, na zona norte da capital, onde hoje existe o Parque da Juventude, entre 1981 e 2000. A laje do Sabin ou da Godói, como é conhecida por causa das ruas do entorno, foi a primeira do projeto, que começou em 2018. É a laje raiz. “Brinco que elas são mimadas porque a aula começa às 11h30”, sorri Sophia, que, naquele dia 5 de dezembro, já tinha dado aula em Diadema, no ABC paulista.
“Eu emagreci nove quilos depois que comecei as aulas, estou me achando”, comenta, aos risos, uma das alunas com as outras. “Sophia, pega um tapete para essa aqui também, ela tá só olhando”, riu outra, apontando para a reportagem. A estudante de psicologia Elisângela Aparecida Santos, 32, também comemorava. “Eu tinha muitas dores nas articulações, nos joelhos, daí vi uma reportagem do projeto na TV e decidi vir”, conta. “No dia, fiquei meio assim, não estava com roupa adequada, mas a Sophia me convidou para participar mesmo assim e há dois anos eu venho. Costumo ir na laje da Cohab Adventista, que é mais perto de casa, mas venho na daqui também porque me sinto muito bem, melhorou minha disposição”.
De todas as lajes, a da Godói é a única que não é coberta. Apesar do calor, a professora vinha protegida com um macacão rosa cintilante, os braços cobertos, uma camiseta, um boné azul e óculos escuros. “Quando está um sol muito forte, a gente faz embaixo [na área coberta], mas como foi rapidinho, não teve problema”, diz. As aulas duram cerca de 1h30 e acontecem aos finais de semana.
Em abril, Sophia descobriu um câncer de amídala e fez tratamento durante os meses seguintes com quimioterapia e radioterapia, sendo a última sessão há um mês. Em quatro deles, teve de ficar longe das alunas. “Eu estava fraca por conta da falta de apetite, mas o projeto não parou, meu professor veio no meu lugar nos finais de semana que eu não estava”, afirma. “E eu fiquei meio ‘será que conto para elas?’ porque afetou a minha rotina, mas decidi expor até para mostrar que estava tudo bem e o que eu estava passando, até como forma para superar”, diz.
Ali, além de professora, Sophia é amiga. “A gente divide histórias, fica sabendo o que se passa com cada uma, o porquê veio ou não, e se constrói uma relação, uma fidelidade. Não pode dar mancada. As pessoas já são desconfiadas, então eu insisto nelas, é um compromisso.”
Moradora do bairro da Pompeia, na zona oeste da cidade, Sophia passou a incorporar o ioga há seis anos. “Como eu já era atriz e trabalhava muito com o corpo, passar para o ioga foi um passo e me deixa bem”, diz.
A região onde reside, para ela, também é estratégica. “Como dou aulas particulares durante a semana, são locais onde minhas clientes moram, mas também acabo falando do Treino da Laje, porque algumas das minhas alunas na periferia são funcionárias dessas clientes, então eu mostro que elas também podem fazer, também podem ter acesso.”
Dali do treino, a etapa seguinte do domingo era preparar os lanches que seriam entregues no final da tarde para as pessoas em situação de vulnerabilidade social na região da Luz, no centro de São Paulo, bem no epicentro da Cracolândia.
As entregas começaram alguns meses antes da pandemia e se intensificaram no decorrer de 2020 para 2021. Numa picape Toro branca, que a associação Treino na Laje ganhou em novembro, Sophia nos levou para buscar pacotes de 500 pães a serem cortados para passar manteiga.
Na logomarca rosa, estampada no carro, bem abaixo de Treino na Laje, está escrito “da ponte pra lá”, uma referência à música “Da Ponte Pra Cá”, dos Racionais MCs, que tem como pano de fundo a Ponte João Dias. Em frente à laje da Godói e em ruas adjacentes não faltam grafites com os rostos e letras dos integrantes do grupo de rap. “Ali já pela marginal, você já enxerga prédios espelhados, parecendo Dubai, uma realidade completamente diferente das periferias e de onde nosso trabalho alcança”, explica Sophia. “Aqui, as casas ainda são um pouco mais estruturadas, mas tem lugares onde são de madeira, de lona”.
Não foi passando pela ponte, mas por uma linha de trem, que a professora passou a se envolver com causas sociais. Desde os 13 anos, fazia balé. “Eu tinha 17 anos, passava de trem para ensaiar, fazia teatro, ia e voltava, sempre via ali o Complexo do Carandiru, tinha curiosidade, queria conhecer, alguma coisa me puxava para lá”, lembra.
“É como o Drauzio [Varella, médico], que eu conheci o trabalho e ele conheceu o meu, dizia: não dá para explicar”. Filha de Jacques Bisilliat, um ex-preso político que fugiu da 2ª Guerra Mundial e veio parar no Brasil, com a fotógrafa e cineasta inglesa Maureen Bisilliat, cuja obra teve uma exposição no Instituto Moreira Salles no ano passado, Sophia relata que o trabalho da mãe ao registrar principalmente populações marginalizadas no Brasil teve influência nesse sentido, mas ela mesma acabou tendo mais contato com outras classes sociais.
“A minha mãe tinha mais o senso estético, da fotografia, do olhar por trás da câmera. Eu acabei tendo uma relação mais profunda e hoje os meus filhos brincam que eu estou mais na favela do que em casa, mas não deixei de estar presente”, afirma. “Eles mesmos já deram aula no projeto, meu filho [Jacques] tem um trabalho voltado ao circo.”
Numa das vielas da rua Adoasto de Godói fica o que a Sophia e outros integrantes da equipe chamam de QG (quartel general), um acesso de escadas e uma espécie de laje onde fica uma cozinha acima da casa da auxiliar de limpeza Dayane Bispo. Com uma touca no cabelo e preparando o chá que faz parte das doações, brincou: “ficou lá em cima tomando sol, enquanto eu estava aqui embaixo trabalhando”, riu. Ela passou a integrar o projeto por causa da irmã Viviane, que já conhecia Sophia, a qual não estava no local por conta de um “bico” de manicure que conseguiu no dia.
“No dia que eu não consigo ir para fazer as doações, eu fico bem triste, bate uma depressão”, conta Dayane. “Numa dessas, em outro lugar, teve uma vez que a gente sempre via um mesmo senhor que pegava lanche com a gente, o chamavam de Bahia, e aí eu chamei para passar a Páscoa em casa”, lembra. “Eu fui muito criticada por um pessoal, mas como não devo satisfação para ninguém além da minha família, deixo para lá”.
Ali, pelo menos umas cinco pessoas se organizavam para preparar os lanches: pão com manteiga, café, chá e chocolate. “Às vezes nem todo mundo pode no dia, então a gente sai na rua e pede ajuda para os moradores mesmo”, conta Sophia. Entre uma música e outra que acompanhava a organização, o dançarino João Vitor Santos, 23, se divertia fazendo alguns passinhos e revezava na parte dos pães. A letra de “Saudades mil”, da dupla 509-E, fazia coro entre eles. Formado pelos rappers Dexter e Afro-X, o grupo foi formado em uma cela do Carandiru e começou a ganhar destaque no ano 2000, na época em que Sophia idealizou e coordenou o projeto Talentos Aprisionados e também conseguiu organizar shows para a dupla.
“Eu não voltei mais a fazer trabalhos em presídios porque foi um luto grande depois que o Carandiru começou a desativar”, afirma a professora. “No começo, era aquilo de ‘o que essa branca de olho claro está fazendo aqui?’, mas com o tempo e com a confiança, eu passei a ter uma autonomia e uma circulação que você não tem hoje, as paredes eram pintadas, parecia uma cidade dentro de outra, eu ia nas celas, na pior que dissessem que fosse, mas depois começou a ter as transferências das pessoas por causa da desativação, então perdia o vínculo, ficou uma coisa cinza, fria e não teria como continuar dali”, desabafa.
“Nas comunidades que vou, busco um pouco disso que tinha lá. Gosto de ir, gosto de estar onde os outros não querem ir, de desabrochar esses talentos porque tem tanta coisa do lado de cá que ninguém está vendo porque falta oportunidade”.
Para Sophia, é dever das pessoas mais privilegiadas ajudar aqueles que mais necessitam. “Existe um sentimento de culpa que eu vejo, mas precisa ir além disso, doar nem que seja um pouco de si ou do que você tem que não vai fazer diferença no final do mês”, afirma. A ideia também é buscar implementar um sistema de assinaturas, em que as pessoas possam colaborar por mês.
“Não importa quem vai estar no poder, seja Lula, seja Bolsonaro, porque o problema é mais profundo e não vai se resolver do dia para a noite, então eu vou continuar o meu trabalho, por isso eu busco parcerias, com empresas, com associações, porque se você não pode, então ajude alguém que já está fazendo um trabalho”, argumenta.
Já no final da tarde, por volta das 16h30, a picape Toro com a equipe cruzou da zona sul para o centro da cidade acompanhado de outros veículos com voluntárias, que levavam bolos de laranja, além de itens como guardanapos, copos e água. “Vamos ver se chegamos antes da Prefeitura”, diz Sophia. Geralmente, a van com as marmitas entregues pelo governo municipal na Alameda Cleveland, uma das que formam o entorno da Cracolândia, acontece às 18h30.
“Nunca nos impediram de fazer as doações, mas fica aquela situação de que eles ficam um pouco incomodados porque têm prioridade, mas não deveria ser disputa, é doação de comida”.
Ali, a equipe montou uma mesa de plástico e começou a organizar os alimentos. “Pode chamar o pessoal, tia?”, perguntou um rapaz que estava próximo dos veículos. “Olha a doação”, avisou. Na Praça Júlio Prestes, onde fica a Sala São Paulo, acontecia a entrega de uma premiação aos bolsistas da Orquestra Jovem do Estado, corpo artístico da Secretaria de Cultura e Economia Criativa do Estado de São Paulo.
Uma fila pequena começou a se formar. Sophia e João Vitor pegaram parte dos lanches para levar às pessoas que estavam mais dentro do fluxo, que é como se chama a parte com maior concentração de pessoas na Praça Júlio Prestes onde há consumo e venda de drogas. Sem identificação nem câmera, a reportagem também acompanhou a entrega do pão e do café.
Pessoas, a maioria negras, em situação de rua, bem vestidas, de terno, com roupas rasgadas, com deficiência, travestis, mulheres, vendedores ambulantes de artesanato, com ferimentos no rosto por causa de briga, idosos, com ou sem cachorros, segurando cachimbo ou com uma garrafinha de bebida alcoólica estavam ali.
“Tia, posso pegar um pão?”, “Tia, posso pegar um café?”. “Deus os abençoe”, diziam quando recebiam. “Quanto está o jogo do Grêmio contra o Corinthians?”, perguntou um catador de latinha à reportagem. Estava empatado, faltando 10 minutos para o término da partida.
Às 18h30, estacionou a van da Prefeitura no local, quando a equipe do Treino na Laje já tinha esgotado as entregas de lanches, para entregar marmitas. Nas quentinhas de isopor, vimos macarrão, feijão, farofa e frango. Famílias que não integravam o chamado “fluxo”, mas moram nos arredores, também foram ao local buscar alimento.
“Tia, vão voltar semana que vem?”, perguntou um outro rapaz. “Vamos”, assentiu Sophia.