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Don L: vendedor de CDs piratas no Ceará, é fã de Jorge Ben e hoje o 'rapper favorito' de muita gente

Rapper se apresenta com banda neste sábado (16) na 9ª edição do Coala Festival, no Memorial da América Latina, em São Paulo

15 set 2023 - 05h00
(atualizado em 3/10/2023 às 19h32)
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Don L prepara show com banda, com espaço para improviso, no Coala
Don L prepara show com banda, com espaço para improviso, no Coala
Foto: Divulgação

“O último bom malandro”, o “rapper favorito do seu rapper favorito”, até mesmo “Mano Brown do nordeste” como queira chamá-lo. A unanimidade é que Gabriel Linhares da Rocha, o Don L, 42, é hoje um dos nomes mais influentes do rap, com uma obra musical de respeito, criativa e lida como um instrumento de reflexão sobre a luta política no Brasil – sempre “muito mais guerrilheiro que MC”, já dizia ele.  

Nascido em Brasília (DF), aos dois anos de idade se mudou com a família para Fortaleza (CE), onde cresceu e viveu boa parte da vida. Ali começou a se envolver com os movimentos sociais locais e com a cultura hip hop. O artista despontou na cena em 2006 com o grupo de rap cearense Costa a Costa. 

Em carreira solo lançou os álbuns “Caro Vapor/Vida e Veneno Don L” (2013), “Roteiro Pra Aïnouz, Vol. 3” (2017) e “Roteiro Pra Aïnouz, Vol. 2” (2021). O último disco lhe rendeu o título de Artista do Ano pela Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA). Este mês, ele também liberou o single “Lili”, com colaboração do rapper Terra Preta.  

Em entrevista ao Visão do Corre, Don L fala sobre formação política, referências na música brasileira, os corres da adolescência em Fortaleza, mudança para São Paulo e sobre o próximo show no Coala Festival. Confira: 

Você cresceu em Fortaleza? Em qual região da cidade viveu e quais lembranças você tem dessa época?  

Cresci mudando muito de bairro. Nasci em Brasília (DF), porque minha mãe e meu pai estavam procurando emprego por lá. Com dois anos, voltei pra Fortaleza. De Fortaleza, a gente foi para o Maranhão. Moramos um tempo em São Luís, depois voltamos novamente pra Fortaleza – onde tenho um pouco mais de lembranças da infância. Cresci no bairro da Varjota, no comecinho do Mucuripe. Com 16 anos, saí da casa da minha mãe e fui morar sozinho em outro bairro que não tinha nada a ver, não conhecia ninguém.

Também fui morar no Conjunto São Pedro, no Grande Mucuripe, o chamado Morro Santa Terezinha, no bairro Vicente Pinzon – inclusive, dizem, que é onde as primeiras caravanas dos invasores chegaram [no Brasil], do próprio Vicente Pinzon, mas os indígenas locais botaram eles pra correr. Não conseguiram arrumar nada. Então, passei por Varjota, Vila Nova, a área da zona leste [de Fortaleza], a Favela dos Índios, Verdes Mares, eu andava por tudo aquilo ali quando era moleque, era meu território, onde eu me fiz adulto. 

E quais corres você teve de fazer morando sozinho aos 16 anos?

Fazia uns trampos de venda de CD. Naquela época, eu não pensava em fazer música, mas gostava muito de consumir. Saía na motinha vendendo CD por Fortaleza inteira, depois vieram os DVDs. A gente vendia o CDzinho pirata, comprava por R$ 2,50 no Beco da Poeira, e vendia por R$ 5. Naquela época, isso era um lucro bem bom. Às vezes ganhava R$ 50, R$ 100, que era como se fosse R$ 500 hoje em dia.

Vendia mais em favela e periferia. A galera pedia brega antigo, por exemplo, aquele coroa dono de bar que tinha uma nostalgia das músicas que ele curtia antigamente, mas não tinha o poder aquisitivo suficiente pra comprar um CD original. Então, quando chegou o CD baratinho, os caras piraram.

Depois de um tempinho foi que comecei a ouvir rap e a procurar discos de vinil e querer sacar de música brasileira. No centro de Fortaleza, na Rua Ildefonso Albano, quando fechava o comércio os caras ficavam exibindo vinis no meio da rua. Era muito barato e coisa muito rara. Cheguei a comprar o primeiro disco do Jorge Ben, “Samba Esquema Novo”. Alguns anos depois, tinha quase todos os discos do Jorge Ben e todos os discos do Bezerra da Silva. Esses são os que eu queria ter a discografia completa. 

Jorge e Ben e Bezerra da Silva são grandes referências pra você? E quais rappers te inspiram?

Jorge Ben fez uma música que ultrapassou todas as fronteiras, ele é o maior. Temos também João Gilberto, gigante em seu próprio sentido. Além disso, ouvi muito Bezerra da Silva, e sou muito fã das letras e da música dos três primeiros discos do Belchior – pessoalmente eu não gostei muito do que foi se construindo em torno dele musicalmente depois, mas continua sendo o maior letrista que nós tínhamos, um cara da caneta mais braba. 

E a referência no rap, claro, Racionais, os maiores, não só no Brasil, mas no mundo. O que eles representam não tem paralelo, não tem como comparar, nem mesmo os norte-americanos. Racionais representa um país de maioria negra, mais de 50% da população. Quando chegaram falando com a favela daquela forma, foi muito foda!

Da gringa, atualmente, gosto muito de uma rapper chamada Noname, ela faz um som diferenciado. Resgata uma tradição de luta dos pretos norte-americanos que foi perdida porque foi exterminada, de reivindicar uma revolução no coração do império. Acho que ela consegue trazer, em termos de discurso, o retorno dessa discussão. Fala sobre socialismo, por exemplo, ao mesmo tempo que musicalmente é muito bom. Ninguém precisa estar fazendo rap de panfleto, “rap de protesto”, mas você precisa propor algo novo. 

Noname apareceu pela primeira vez num disco do Chance The Rapper, com aquela galerinha de Chicago – essa cidade sempre teve uma coisa muito louca, meio parecida com Fortal, uma cidade menor no cenário do do hip hop e que foi se tornando uma referência musical pra grandes artistas do rap, e se transformando na cidade mais violenta dos Estados Unidos. 

Os rappers que fazem parte da minha formação tem mais a ver com o rap gangsta, aquela geração da virada dos 1990 pra 2000 e do meio dos anos 2000. 

Don L tem como referência no rap os Racionais MCs
Don L tem como referência no rap os Racionais MCs
Foto: Divulgação

Fazendo uma conexão com artistas dessa época no Brasil, em “Favela Venceu”, um dos últimos singles que lançou, você traz o "Rap das Armas", essa referência do funk carioca dos anos 2000. Por que a escolha desse remix e o que te motivou a relançar essa letra?

O funk é uma manifestação cultural brasileira gigante, algo que você pode comparar ao nascimento do samba de forma contemporânea. Nasce na favela, é música de favelado, vai ser duramente reprimido. Com o “Rap das Armas”, pego a releitura da versão original – um funk mais consciente que pregava, às vezes de forma até um pouco ingênua, a paz – pra trazer um estado de guerra mesmo. 

O “Rap das Armas”, um segmento do funk proibidão, caracterizado pela música de guerrilha, representa as vivências de pretos e pobres vítimas dessa guerra ao tráfico nas favelas do Rio de Janeiro.

Apesar da marginalização, a versão original dessa música ganhou grande repercussão no Brasil inteiro. Virou um clássico da música nacional, todo mundo conhece de uma ponta a outra do país. Você vai na periferia de Manaus ou de Fortaleza, de Natal, todo mundo conhece essa música. Exatamente por isso, queria colocá-la dentro de um outro contexto, onde talvez a gente começasse a pensar numa guerra por libertação, lutar pela nossa liberdade.

Falando ainda de “Favela Venceu”, você trouxe um nome de Fortaleza no feat, o Bakkari. Como você vê a ascensão do rap no nordeste? 

É muito louco, mas Fortaleza virou um dos principais polos do rap brasileiro. Outros vieram antes de mim, outros vieram antes do Costa Costa, mas o Costa Costa foi quem chegou com o pé na porta e disse: “ninguém aqui é segunda divisão”. A gente está aqui para jogar de igual para igual com todo mundo no Brasil, para estar entre os melhores. E hoje em dia é assim também. Tem Matuê, o Will, o Nego Gallo. O Bakkari é um cara super talentoso e chamei pra rimar ao lado do Djonga.

“O comunista que curte carros”. Na sua discografia como um todo, e sobretudo no último álbum, você traz muito um conteúdo crítico ao capitalismo, né? Como foi seu contato com a formação política marxista? 

Tive contato com a luta política desde quando me envolvi com rap, lá atrás. O rap nordestino tem essa tradição, e o rap em Fortaleza também se organizava como movimento social. As organizações fundavam as chamadas posses. Então tinha posse do bairro tal, posse do Conjunto São Pedro, do Conjunto Ceará. A partir daí eu me formei, fui me envolvendo no movimento hip hop como sendo um movimento social. 

Quando você entrava na luta política, acho que na América Latina toda a gente tem uma tradição obviamente herdada das grandes revoluções marxistas e leninistas do século 20 – em todo o sul Global, América Latina em África, na Ásia – que começou lá na Revolução Russa. Então, a esquerda trazia essa discussão, de que o imperialismo norte-americano se esforçou ao máximo para apagar essa discussão e obteve bastante êxito. 

Fui amadurecendo o entendimento do quadro crônico da política brasileira. Veio cada vez mais fazendo sentido que realmente precisamos de mudanças muito estruturais no Brasil, pra que possamos realmente nos tornar uma nação, um povo desenvolvido, com uma diferença social menos absurda. Temos ainda uma desigualdade brutal, um sistema totalmente corrompido. Há uma quantidade muito pequena de pessoas com muito poder. Fica cada vez mais difícil mudar as coisas.

Entrando um pouco num contexto mais de vida pessoal, como é pra você dividir a rotina de ser rapper, produtor, a vida doméstica, relacionamentos? Como você tem cuidado da sua saúde mental em meio a tudo isso? 

O capitalismo mundial, principalmente no capitalismo periférico onde a gente vive, o adoecimento mental é uma epidemia. Não acredito em alguém que tenha saúde mental vivendo aqui. Você consegue paliativos e artifícios para não enlouquecer, literalmente. 

É uma solução que passa por um processo coletivo de libertação desse estilo de vida neoliberal, que não tem hora de trabalho, hora de descanso. Você não tem segurança nenhuma de ter algum futuro. Vive ansioso, e ainda tem uma telinha de celular com todo tipo de entretenimento e informação. Isso tudo é muito adoecedor. 

O que eu faço, e que talvez me ajude, é ter consciência disso. Tenho plena consciência de que eu tô doente por passar muitas horas utilizando o meu celular. Isso é patológico, eu sei que tenho uma dependência. Poucas pessoas assumem porque é meio feio. Assumir já é um bom começo. Depois, tentar limitar o tempo que fico em telas, praticar esportes, se alimentar bem. Ter conhecimento e consciência da nossa situação coletiva. 

Em Fortaleza, você conta em outras entrevistas, que já tinha a manha de como transitar na cidade, lidar com as violências e desigualdades, onde entrar, onde sair. E morando há 10 anos em São Paulo, você já se sente um paulistano? 

Não me considero paulistano [risos]. O lugar do nordestino aqui em São Paulo é muito bem determinado. A não ser que você seja nordestino rico, né? É óbvio que todos os marcadores sociais do Brasil se misturam com classe. Mas São Paulo é uma cidade em que tenho uma vivência e que amo, de certa forma. Várias pessoas paulistanas do meu ciclo social me ensinaram a gostar da parte boa dessa cidade.

Como outras cidades no Brasil, São Paulo é bastante provinciana. Vende essa ilusão de um cosmopolitismo, que abrange apenas o centro expandido. Nunca vou conseguir conhecer São Paulo por inteira. Continuo desbravando.

Qual seu rolê preferido em SP?

Ultimamente eu não tô muito de rolê de balada. Alguns rolês que tenho gostado muito são os que posso encontrar com a natureza. Por exemplo, o Pico do Jaraguá [na zona noroeste]. É uma terra indígena ali. Infelizmente também muito explorada, um espaço muito pequeno em comparação ao que era deles.

E o centro de São Paulo, um lugar que ainda tem algum resquício de democracia no Brasil. Óbvio, não representa a nossa situação de desigualdade no resto da cidade, mas é um lugar que eu consigo respirar melhor. Quando vou comer num restaurante, se tiver dois, um em Pinheiros e outro no centro, eu quero ir no do centro, entendeu? [risos]

O que o público do Coala pode esperar do seu show? E quais as novidades você tem preparado? Tem mais single em vista? 

Será um show bem especial, com banda. Tô tentando trazer outra experiência, diferente de um show tradicional de rap – que eu também adoro e faço muitas vezes. Agora, trazemos banda não num show menos linear, com espaço para improviso, versões diferentes das músicas, solo de instrumentos pra um momento mais lúdico, de sentir. Porque o rap é muita ideia, muito blá blá blá, fala pra caralho [risos]. 

Quero trazer esses respiros, pra assimilar e entrar no clima. Numa busca de coesão entre forma e conteúdo. Tudo tem que fazer sentido, então eu tento trazer essa experiência pra pessoa que vai ao show.

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Fonte: Visão do Corre
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