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Educação muda a vida de jovens periféricos em Salvador

Projetos sociais potencializam o acesso à educação auxiliando os jovens a realizar uma mudança social nas periferias

13 jul 2022 - 15h42
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O Brasil é um país desigual, no qual pretos e pobres sofrem com a falta de oportunidades para mudar de vida. Os moradores de comunidades são as principais vítimas da falta de atenção desta nação, mas tentam construir os próprios caminhos por meio da educação, que abre possibilidades de transformações reais, possibilitando esperança para todos.

O artigo 205 da Constituição Federal, de 1988, diz que todos os brasileiros têm direito a Educação, que é "direito de todos e dever do Estado e da família". O texto diz que "será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho".

Mesmo sendo um direito de todos os brasileiros, por que só uma minoria tem o direito ao acesso a uma educação de qualidade? Para sobressair a esse problema contínuo, muitos moradores se esforçam para ajudar a mudar o cenário tão complicado no país, como é o caso da professora Ângela Maria Nascimento do Rosário, 64 anos, moradora da comunidade de Pernambués, em Salvador, na Bahia.  

Com mais de 35 anos de carreira, ela diz que para o desenvolvimento das comunidades a educação é fundamental. “A educação é muito importante para as comunidades, pois ela é a base de tudo, é o ‘botão’ da transformação. Sem a educação estamos perdidos”, afirma.

Ângela Rosário nascida no interior da Bahia, de família humilde, revela que escolheu a profissão por causa do incentivo do pai. “Mesmo a minha família vivendo em condições precárias, meu pai sempre falava comigo: ‘você vai ser professora. Nunca deixe de estudar, minha filha’. Sou muito grata pelas palavras dele”, lembra emocionada.

E com esse incentivo do pai sempre na cabeça, ela revela que na sala de aula trata todos como se fossem da família. “Meus alunos são importantes para mim, é como se fossem parte da minha família. Tento apresentá-los melhores maneiras de enfrentar os problemas do dia a dia, sempre elevando a autoestima deles, através de muita paciência e carinho”.

Professora Ângela Maria.
Professora Ângela Maria.
Foto: Arquivo Pessoal.

Nesses anos de profissão, a professora, que ensina series iniciais, jovens e adultos, diz que muitos foram e são os desafios dentro de uma sala de aula, mas que o maior deles, neste momento, é trabalhar com alunos privados de liberdade.

“Na sala de aula os desafios são frequentes. Então, temos que ter empatia, se colocar no lugar do estudante. Temos que tentar buscar soluções para que o aprendizado ocorra da melhor forma possível para todos.  E mesmo com toda a experiência que tenho estou passando por um dos maiores desafios de minha vida: trabalhar com os privados de liberdade, pois muitos deles carecem de muita atenção, contudo sabemos que com a educação eles podem mudar de vida”, afirma.

Embora os desafios sejam recorrentes, Ângela Rosário pontua que tem orgulho de ensinar já que as pessoas precisam de ajuda. “Hoje, eu tenho orgulho de levar conhecimentos para aquelas pessoas que precisam de ajuda. O estudo é tudo em nossa vida e com ele podemos fazer diferenças”, conta alegremente.

E por falar em experiência, a professora faz questão de contar que já se passaram por ela muitos jovens, e muitos deles estão conquistando espaços nunca imaginados. “A minha maior alegria e satisfação é quando alguns alunos me agradecem por se tornarem grande profissionais. E muitos deles vêm de famílias bem pobres, de comunidades carentes. Um dia desses um ex-aluno me disse que sou exemplo. Hoje, ele é um grande médico. Então isso para mim é tudo. Eu me sinto grata, por isso tudo que aconteceu. Imagina, um menino pobre e hoje salva vidas. Olha o poder da educação”, diz emocionada.

Primeiro da família a seguir trajetória acadêmica

“A educação tem um papel importante, se não o central na minha vida, pois ela conseguiu moldar quem eu sou hoje. É a educação que vai mudar a vida de todos, principalmente dos jovens das periferias”, comenta o pesquisador soteropolitano Josair Teles dos Santos, 32 anos, morador do bairro de Marechal Rondon.

Josair Teles faz parte do grupo de pesquisa do Lassos (Laboratório de Estudo sobre Crime e Sociedade), vinculado a linha de pesquisa crime e vitimização. Ele é o primeiro de sua família a ter um diploma do ensino superior, - graduação em Comunicação Social Habilitado em Jornalismo, - a ter o título de mestre em Ciências Sociais pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) e estar doutorando nessa mesma instituição.

Doutorando Josair Teles.
Doutorando Josair Teles.
Foto: Arquivo Pessoal.

O doutorando diz que é o resultado das lutas de seus antepassados, de quem batalhou para que pessoas como ele pudessem ter o direito de estudar e entender que a academia também é um espaço que deve ser ocupado por pessoas pretas das periferias.  “Hoje, eu entendo que se cheguei onde estou, não é apenas fruto de méritos pessoais, mas também de condições bem especificas que muitos como eu não conseguiram chegar, que é ter um pai e uma mãe presentes na minha vida”, afirma.

Josair Teles é oriundo de escolas públicas, de uma família simples e humilde, sem posses para investir em educação. Embora os pais, Dona Idalina e o Senhor Joseval, não tenham tido a oportunidade de concluir o ensino fundamental, eles foram fundamentais para direcionar a família para a educação. “Meus pais não deixaram que eu e meus irmãos ficássemos sem estudar. Muito pelo contrário, eles nos incentivavam a estudar e entender que sem educação não chegaríamos a lugar algum. A educação é a chave de tudo”, enfatiza.

Teles pontua que a vida dele não foi fácil, pois passou por muitas dificuldades, “Quando você cresce nas periferias das cidades, você aprende desde cedo a lidar com diversos problemas e limitações. É a violência quase que diária nesses espaços, as limitações de transporte e mobilidade urbana, o racismo estrutural e a violência policial e institucional, a precariedade na qualidade do ensino. Então, são diversos fatores, um acumulo de problemas sociais”, ressalta.

Durante o ensino médio, ele se deparou com inúmeros obstáculos, pois sempre estudou em escolas públicas, e por isso não teve uma base sólida na formação, e isso refletiu duramente na preparação para o Enem. “Muitos dos assuntos abordados na prova nunca foram pauta dentro da sala de aula. Sou da primeira geração de estudantes que fizeram o cursinho do governo Federal, Programa Universidade para Todos e entrei em uma Faculdade através da nota do Enem, foi durante a graduação que descobrir que existia outros degraus para o conhecimento e, consecutivamente suas barreiras e limitações. Na pós-graduação, fiz a casadinha mestrado e na sequencia o doutorado, confesso não foi nada fácil”, conta.

Para chegar e se manter no doutorado os transtornos foram muitos. Teles conta que os desafios vão desde as dificuldades financeiras, a falta de uma base educacional, passando pelas limitações no campo da pesquisa e chegado nas pressões para estar sempre pronto para atender as expectativas das outras pessoas e até as dele mesmo. “Acho que de todas as adversidades, as minhas cobranças pessoais são os grandes desafios que preciso superar. Estar doutorando não é fácil. O doutorado te dá muito, entretanto também cobra um preço muito alto, em muitos casos, a saúde mental. Entrei no doutorado durante um momento crítico que abateu o mundo inteiro, que foi o Covid-19. Então, não tem sido fácil pra ninguém”.

Mesmo com as dificuldades, ele sente-se orgulhoso por seguir uma trajetória acadêmica, porém espera que mais pessoas das comunidades possam ocupar os espaços acadêmicos. “Quero muito mais jovens das periferias ocupando esses espaços de poder, pois a academia é um local de poder. Ter mais representatividade dos guetos, das comunidades LGBTQIA+ ouvir outras narrativas que historicamente são silencias e marginalizadas pelos polos centrais. Tem uma frase que escutei de um professor na graduação que nunca esqueci: ‘Ser negro é estar em estado constante de vigilância’. E por isso, precisamos ficar em alerta e batalhar por aquilo que desejamos”, finaliza Josair.

Educação para salvar vidas

“A educação foi importante na minha vida, porque ela abriu os horizontes e me permitiu sonhar, ter possibilidades para escolher caminhos. Acredito que esse fator é essencial para jovens negros moradores das comunidades”, comenta a estudante de medicina, Gilglécia dos Santos Mendes, 26 anos, moradora do bairro do Saboeiro.

Ela é filha de mãe solteira e empregada doméstica, que veio do interior da Bahia para Salvador em busca de melhores possibilidades de vida.  “A minha história fala sobre oportunidades que infelizmente boa parte da população negra no Brasil não tem acesso. Me agarro na esperança de um futuro melhor para mim e minha família por meio da educação”, conta.

Gilglécia dos Santos Mendes quando passou no vestibular.
Gilglécia dos Santos Mendes quando passou no vestibular.
Foto: Arquivo Pessoal.

A jovem cursa o sexto semestre de medicina e diz que a educação mudou a própria vida e pode também transformar a vidas das comunidades. “Acredito que o acesso à educação alinhado com estratégias de assistência e permanência estudantil proporciona aos jovens negros de comunidades a possibilidades de sonhar e com isso mudar a sua realidade e do seu ambiente, como familiares”.

 Gilglécia Mendes estudou em escola pública do ensino fundamental ao ensino médio, depois conseguiu ingressar no Instituto Federal da Bahia (IFBA), o qual foi transformador na vida dela. “Nesse espaço aprendi a estudar melhor, a buscar conhecimento. Além disso, tive a chance de participar de projetos que abriram muitas probabilidades em minha vida’, diz.

Nos últimos anos do ensino médio integrado ao ensino técnico de automação industrial, ela começou a pensar na graduação, algo antes nunca imaginado. A partir daí, com incentivo de professores e de colegas, decidiu tentar fazer medicina. “Eu já tinha em mente que não gostaria de seguir a área técnica, e ao começar a explorar possibilidades, vi na área da saúde um caminho que eu me identificava profissionalmente. Tentei ingressar em medicina logo que saí do ensino médio, mas não passei de primeira e a partir dos meus resultados percebi que precisava criar uma base melhor para finalmente conseguir minha vaga”, lembra.

Todavia, os desafios foram imensos até ela chegar na universidade, “Estagiei durante dois anos na área de automação industrial para ajudar financeiramente minha mãe nas contas de casa, e em paralelo a isso estudava em casa para as provas de vestibular. No terceiro ano, consegui uma bolsa integral em um cursinho pré-vestibular, e com uma pequena reserva financeira pude me manter durante esse período sem trabalhar, quando finalmente consegui ser aprovada em Medicina na Universidade do Estado da Bahia (UNEB), em 2019”, explica.

A estudante, uma mulher negra, com raízes no interior da Bahia e moradora da periferia de Salvador diz que foi negada a versão que pessoas com esse background social poderiam ser médicas. “Tudo mudou no momento que eu tive conhecimento por meio de um projeto na faculdade com uma professora e pesquisadora chamada Suiane Costa. Ela me explicou que a história do povo negro não começa na escravização, mas sim que tivemos como ancestrais rainhas e reis, e que inclusive na medicina tivemos o egípcio Imhotep, o qual foi pioneiro na produção de cuidado para saúde”.

A jovem faz questão de ressaltar que faltou por muito tempo referências de pessoas negras, as quais foram excluídas das histórias do povo. “Por muito tempo o que nos faltou foram as referências, algo que foram intencionalmente apagadas da história do povo negro de comunidades. Quero que trajetórias não lineares como a minha sejam um exemplo de inspiração para jovens negros que sonham em resgatar a dignidade e grandeza que foi apagada”, destaca.

A futura médica explana que ser uma das poucas jovens de comunidade periférica a entrar em uma universidade pública é um exemplo para outros acreditarem no próprio sonho. “Acredito que posso ser um exemplo de resgaste dos lugares sociais que foram apagados da nossa história, além disso, mais um exemplo de representatividade para que outros jovens tenham mais força para acreditar que é possível fazer esse movimento por meio da educação”.

Gilglécia dos Santos Mendes.
Gilglécia dos Santos Mendes.
Foto: Arquivo Pessoal.

Embora os desafios foram e são grandes, ela tem muita gratidão a família e alguns amigos por tudo que vem acontecendo no caminho dela. “Durante a minha trajetória pude contar com poucas, mas valiosas pessoas que me incentivaram a continuar seguindo meus objetivos, como minha irmã, algumas amigas e amigos, namorado e alguns professores, assim como os projetos educacionais os quais fiz parte. Agora, não posso deixar de mencionar a minha maior apoiadora: a minha mãe. Apesar de não ter recursos financeiros, está do meu lado me incentivando e me apoiando nesse percurso o tempo todo”, fala com gratidão.

E sobre o futuro, ela diz que além de se graduar como médica para cuidar da saúde do povo, tem o desejo de fazer um intercâmbio na área da medicina. E para aquelas pessoas que querem vencer na vida através dos estudos, a jovem manda um recado: “Em primeiro lugar, acreditem em si mesmo e evitem se comparar com pessoas que têm trajetórias muito diferentes, pois vocês não partiram do mesmo lugar de vantagens ou desvantagens sociais. Portanto, busque estratégias para seguir seus objetivos e caminhe com pessoas que te impulsionam”, finaliza. 

ANF
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