Espectadores não se sentem representados no cinema nacional
Estudo revela que em mais de 15 países os espectadores de cinema não se sentem representados e apontam estereótipos
A Paramount Global realizou uma pesquisa inédita sobre representatividade nas telas de cinema e TV. "Meu Reflexo: Representatividade Mundial nas Telas" faz parte do projeto Race and Equity Taskforce, da Paramount International Networks, como parte do Content for Change, uma iniciativa mundial da Paramount que visa combater o racismo, o preconceito, os estereótipos e o discurso de ódio por meio da cultura da empresa, da sua cadeia de suprimentos criativos, através dos conteúdos que cria.
A análise contou com entrevistas em 15 países, incluindo o Brasil, e teve como principal foco o questionamento “Como os conteúdos do cinema e da TV ensinam as pessoas sobre si mesmas e sobre os outros?”
As entrevistas aconteceram por vídeo e presencialmente com pessoas de 15 a 49 anos. No Brasil 89% das pessoas entrevistadas definem o conteúdo veiculado no cinema e séries de TV como não correspondente à formação étnica do país e a realidade que se propõe a retratar .
Ainda de acordo com a pesquisa, 85% dos entrevistados concordam que representatividade nas telas tem impacto no mundo ao influenciar as percepções das pessoas e na construção do imaginário coletivo da sociedade, principalmente sobre realidades que o público não vivencia.
Para Andrea Rosendo, mestre em Comunicação pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e doutoranda pela USP com pesquisa sobre pensamento decolonial e cinema latino americano produzido por mulheres, a sociedade é permeada pela construção de vários imaginários, “Alguns desses imaginários são sustentados por forças conservadoras que desejam a perpetuação do sentido das coisas, pois também estão conectados por ideologias. Entretanto, os imaginários não são estáticos. Eles se modificam de acordo com a renovação das sociedades, com a renovação de grupos que constroem outras narrativas para si e sobre si.” explica Andrea.
De acordo com a pesquisadora, os espectadores, telespectadores e o público geral também produz sentidos sobre os imaginários recebidos e, por meio de uma atividade não passiva, conseguem romper com imaginários ultrapassados.
Igor De Lucca, estudante de letras, ativista do movimento social e produtor de conteúdo para internet sobre cultura geek e indústria cultural entende que uma das funções do cinema, assim como qualquer arte, é transmitir sentimentos, e através disso gerar representações. “Quando a gente se sente no lugar do protagonista ou de qualquer personagem a obra cumpre com seu papel” afirma De Lucca.
Para ele, embora os grandes pólos midiáticos estejam se esforçando para contemplar a diversidade, isso ainda ocorre de maneira problemática. “ Mas o que realmente parece, hoje, é que ainda existe uma dificuldade em representar pessoas negras, LGBTQIA+, ou oriundas de qualquer contexto visto como ‘oprimido’, sem que se fale especificamente das dificuldades vividas por essas pessoas. Se tem alguém negro na história, grandes chances de que vão falar de racismo, ou no mínimo usar o fato de que há uma pessoa negra num papel central da trama. Fica parecendo até uma fetichização daquele sofrimento, sabe?” afirma Igor.
O depoimento de Igor representa a opinião de 52% das pessoas que se consideram de um grupo oprimido de direitos e se sentem mal representadas nas telas ou com falta de precisão. No Brasil, entre os que se sentem mal representados, 58% dizem que a representação que existe é pouca, ou seja, pessoas como eles não estão presentes nas telas, e 37% afirmam que falta precisão na representação, ou seja, mesmo quando a representação existe, ela não é verídica e é feita a partir do olhar de alguém não pertencente ao grupo.
De acordo com a pesquisa da Paramount a sensação de estar mal representado nas telas se deve a uma combinação de fatores, destacando raça e poder econômico. Os tipos de corpos, sotaques e ambientes representados também não condizem com a realidade dos espectadores. No Brasil apenas 25% dos entrevistados já se viram ou sentem-se representados pelas casas retratadas nas telas e, o percentual é ainda menor quando perguntado aos modos de vida e cultura (comportam-se como eu veem sua herança cultural representada) atingindo apenas 12% dos entrevistados.
A pesquisadora Andrea Rosendo afirma que os estudos decoloniais ajudam a compreender as representações em filmes e produções audiovisuais brasileiras e de demais países. “Ao fazer uma análise fílmica, podemos nos orientar por esse referencial teórico e fazer indagações que nos ajudam a compreender, por exemplo, que colonialidades foram mantidas ou refutadas. Quando nos perguntamos qual a representação da mulher ou qual a representação da pessoa negra, da pessoa indígena, é possível encontrarmos evidências que indicam se um determinado cineasta ou realizador manteve a representações da nossa matriz colonial de poder ou se propôs a ruptura do machismo, racismo, patriarcado e, por conseguinte, dos estereótipos e hierarquizações/subalternização." explica a pesquisadora.
Ainda segundo Andrea a decolonialidade problematiza a noção de pós-colonial. “Essa epistemologia pode orientar cineastas e produtores de audiovisual a repensar as suas realizações, uma vez que a opção decolonial alicerçada como forma epistêmica, teórica e política, visa compreender e atuar em um mundo marcado pela permanência de uma colonialidade global, nos diferentes níveis da vida pessoal e coletiva. Ou seja, ela possibilita, no processo do fazer e da dimensão pedagógica do cinema, a descolonização da nossa forma de pensar, a descolonização do nosso olhar.” afirma Andrea.
Acesse aqui a pesquisa na íntegra.
Por trás das câmeras
A representação atrás das câmeras também deixa a desejar. Os números são da pesquisa Diversidade de gênero e raça nos lançamentos brasileiros de 2018, divulgada pela Agência Nacional do Cinema (Ancine) que expõe as desigualdades que ainda existem dentro do cenário audiovisual brasileiro.
De acordo com o estudo, os homens brancos permanecem como aqueles com mais espaço no cenário. Eles são maioria entre os diretores (75,4%), produtores (59,9%) e também nos elencos. Enquanto as mulheres negras ficam de fora de diversas categorias. Elas não aparecem como diretoras, nem como roteiristas. Só figuram na lista de produção-executiva, ao lado de mulheres brancas ou equipes mistas representando os percentuais de 1% e 3%, respectivamente. Para cada filme dirigido por uma pessoa negra, outros 70 foram dirigidos por homens brancos.
Giorgia Prates, diretora de cena e diretora de fotografia, explica que a questão imagética no Brasil é construída para manter as hegemonias - racismo, machismo e divisões de classe. E ter essas representações nos espaços de decisão transforma integralmente não só o produto final mas o processo inteiro, “Enquanto mulher preta, lésbisca, isso muda bastante coisas, poder fazer e poder trazer outras criações e outras discussões para dentro do audiovisual, esse lugar hegemonicamente de homens brancos. Possibilita a gente colocar a nossa realidade na mesa e não apenas aquilo que eles pensam que é, ou que, fazem parecer que é. Estar representando e trazendo pessoas negras é muito mais que contar a nossa realidade é impedir que apenas a narrativa desses homens seja contatada”, afirma Giorgia.
A diretora relata os diversos desafios que enfrenta em sua carreira e frisa as diferenças entre estar em um espaço de decisão e apenas fazer parte da equipe, “ Quando eu faço a direção de cena, eu posso pensar na minha equipe, eu posso chamar pessoas pretas, LGBTQIA+ e aí o set se torna maravilhoso. Temos pessoas que falam a mesma língua, pessoas que estão ali em uma troca muito intensa.” conta Giorgia.
Mas de acordo com a diretora, o cenário muda nos trabalhos de fotografia e estilo. “Para eles ( pessoas cis, brancas, heterossexuais) esse é um trabalho menor e subalterno e não é possível opinar ainda mais em equipes quase inteiras compostas por pessoas brancas.” relata Giorgia.
Segundo Giorgia, outro incômodo enfrentando nos locais de gravação é a decisão sobre as narrativas abordadas em temas referentes a minorias. Ela cita como exemplo da importância do olhar de pessoas que lutam pela igualdade o trabalho no case “O uniforme que nunca existiu - Aida Santos” que conta a história da única mulher que representou o Brasil nas olimpíadas de 1964, “ A abordagem desse comercial, aponta o abandono do país para com a história dessa mulher, a chama para responsabilidade de toda uma estrutura que ainda persiste em nosso país. Essa decisão não viria de uma equipe que não tem identificação ou pelo menos não está aberta para ouvir as nossas verdades”, diz.
O comercial concorre como finalistas na categoria Glass do Cannes Lions, o mais importante festival de criatividade do mundo. Veja aqui o comercial.
Também cansado de participar de produções estereotipadas e pejorativas, o rapper, roteirista e diretor Mano Cappu decidiu se formar roteirista. “ Eu quero colocar palavras que queremos ouvir na boca de atores e atrizes pretas. Nesses 388 anos após a escravização, a população negra ainda passa por muitas mazelas, somos sempre estereotipados. ” afirma o rapper.
Mano Cappu entende que seu papel como produtor cultural, seja no cinema ou na música é o de semear novos olhares “ Eu faço a analogia: eu sou um agricultor que está jogando sementes no solo, elas vão dar frutos no tempo certo. E há vários tipos de solos, os mais arenosos mais férteis… E às vezes o solo é super fertil mas o meio em que ele se encontra não permite florescer. Meu papel é esse é de ir transformando” afirma Cappu.
O rapper afirma ainda que a cultura faz com que as pessoas se entendam, “Quantos filmes, músicas já não te fizeram chorar? Mudar uma atitude, entender sobre algo diferente? Nos meus filmes a minha mensagem é não desistir. Por mais que seja difícil, é necessário que a arte entre nas favelas, como Emicida fala numa das músicas dele, nunca volte para sua quebrada de mãos e mente vazia, é preciso ensinar os nossos, para que a gente ocupe esses lugares de liderança também” ressalta Cappu.
Em 2019, o rapper e produtor, que é egresso do sistema prisional, começou a escrever sobre suas vivências no cárcere para o cinema. Com os curtas-metragens “Bença” e “Quando Eu For Grande?”, Cappu foi semifinalista duas vezes, uma no Festival Rota/2020 e outra no Fade To Black Festival/2021.