Glória Maria, a jovem de Paraisópolis que revoluciona a cultura na favela
Mãe e organizadora a primeira batalha de rima da comunidade, a produtora audiovisual também criou projeto de formação musical na região
Uma jovem preta, favelada e mãe. Glória Maria, 24, não conta uma história única. As violências e desigualdades fazem parte de sua narrativa, mas não só. Uma caminhada que a fez entender o valor de sua voz, atitude e talento por uma mudança coletiva na educação, na comunicação e na cultura dentro das quebradas.
Glória vive desde os 15 anos em Paraisópolis, a segunda maior favela de São Paulo, na zona sul de São Paulo. Ali ela criou a primeira batalha de rima da região. É jornalista, produtora audiovisual, articuladora cultural e também co-fundadora do estúdio 7 Notas, criado para fortalecer artistas locais, desenvolvendo um programa de formação musical.
Da periferia de Brasília até São Paulo
A história de Glória começa no Distrito Federal. Ela, que é filha única, nasceu em Samambaia Sul, na periferia de Brasília, sendo criada pela avó. As passagens por São Paulo na infância quase sempre eram turbulentas. Aos 14, ficou grávida – da pequena Emanuele Brito, hoje com nove anos – e passou a morar definitivamente na capital paulista.
Nesse processo, de gestação e mudanças, a jovem também convivia com a violência doméstica. “Meu pai era alcoólatra e ficava muito agressivo. Eu não gostava de São Paulo de jeito nenhum, era uma casa que não me trazia boas lembranças. Foi muito pesado. Dos 14 até meus 17 anos a violência era presente na minha casa”, conta, em entrevista ao Visão do Corre.
No terceiro ano do ensino médio, faltando três dias para completar 18 anos, Glória lembra que passou por uma uma cena de violência doméstica extremamente forte. “Tive que sair de casa, pulei um muro desesperada, chorando, porque pensei que meu pai ia matar minha mãe com uma faca. A Manu estava dormindo, ela tinha uns três anos.”
- De acordo com dados divulgados em março deste ano pela Rede de Observatórios da Segurança, uma mulher é vítima de violência a cada quatro horas no Brasil. O levantamento registrou 2.423 casos de violência contra a mulher em 2022, sendo 495 feminicídios. São Paulo e Rio de Janeiro concentram quase 60% do total de casos.
E foi na escola onde Glória aprendeu a nomear as violências que vivia e a refletir sobre as questões sociais as quais estava inserida.
“Entendi que eu fazia parte da estatística de mulheres que tinham tido filhos de forma precoce, na adolescência. Entendi que eu também passei por violência obstétrica. Então, comecei a adentrar esse mundo, estudar sobre feminismo negro, entendendo o nível de desigualdade [entre os território de Paraisópolis e Morumbi, por exemplo]”, destaca.
Na época, ela já se articulava entre os coletivos de cultura em Paraisópolis e também participava do curso de jornalismo organizado pela Énois, um laboratório que trabalha para impulsionar a diversidade e representatividade no jornalismo.
Numa rotina exaustiva, conciliava estágio – recebendo um valor que mal dava para pagar o aluguel – e os estudos. Também concluiu o curso “Você Repórter da Periferia” do site e coletivo periférico Desenrola E Não Me Enrola.
O rap e a educação como fórmula para mudar o mundo
“Um dia tava lavando a louça, tinha entre 16 e 17 anos, e ouvia muito as músicas do Criolo, do álbum “Convoque seu Buda” [2014]. Essas e outras canções me deram muita força, porque eu era uma jovem disposta. Tipo, preciso mudar o mundo, tá ligado?”
E tem mudado. Além do rap, professores de história, português e filosofia foram importantes na formação da jovem para que enxergasse em si outras possibilidades, além de outras perspectivas e acessos para quem vive na mesma favela. “A educação tem um papel fundamental na minha vida”, enfatiza.
O combustível para lutar foi tomando forma e materializado durante as ocupações das escolas públicas em 2015. Aluna da Escola Estadual Etelvina Goés de Marcucci, Glória fez parte da mobilização secundarista que ocupou mais de 200 escolas em São Paulo. Um acontecimento histórico em defesa do direito à educação no Brasil.
“Fomos ajudar os alunos da [escola] Maria Zilda [Gamba Natel, também em Paraisópolis] a ocupar. A gente foi espalhando as ocupações por São Paulo e pelo Brasil”, relembra.
“Na época, fizemos um trabalho de base para conseguir falar com os pais. Explicar o que era a reorganização escolar [proposta pelo então governador Geraldo Alckmin], de sucateamento das escolas. Já é precário, como será colocar 50 alunos dentro de uma sala? Conseguimos vencer assim. O diretor foi expulso e os pais começaram a apoiar a ocupação e fomos acolhidos pela comunidade”, detalha Glória sobre a experiência.
No mesmo período, ela conta que conseguia levar alguns debates para discussão com os estudantes, como a descriminalização do aborto, racismo, violência policial, entre outros temas urgentes.
Batalha do Paraisópolis
Ao finalizar o ensino médio, pairou sobre ela a dúvida de como poderia continuar articulando com a juventude, sugerindo reflexões. Daí surgiu a ideia de criar a Batalha do Paraisópolis, um evento contínuo de rap para divulgar os MCs da favela.
Junto com Mike Johnnatan, seu companheiro e pai da Manu, iniciaram a organização da batalha de rima, em 2017.
“Foi tudo no improviso, juntamos caixas, microfone e conseguimos um espaço na aqui na comunidade, chamado PIPA. Era um estacionamento. Na primeira edição, a premiação foi passando o famoso boné, e tinham colocado cigarro, balinha, nota de R$ 2”, conta.
Segundo a comunicadora, as batalhas começaram às 23h e seguiam até 3h. “Foi um período em que me encontrei, enquanto produtora cultural”, diz, e continuou por seis meses tocando a batalha até que foram contemplados com o edital do programa VAI (Valorização de Iniciativas Culturais), da Prefeitura de São Paulo.
Apesar de ganharem suporte para a compra de equipamento, o problema de espaço ainda persistia. “Paraisópolis é um lugar superlotado, não tem calçada. A gente tem um parque agora, mas é muito fuleiro. O jeito, na época, foi ocupar uma pracinha, só que tínhamos muito conflito com uma pessoa de um condomínio próximo. Ela jogava ovos e pregos”, narra.
Foram cinco anos à frente da batalha. O evento ganhou corpo, virou referência e chegou a receber, em apenas uma noite, cerca de 400 pessoas. Surgiram diversos MCs, que viram na arte e na música maneiras de sonhar.
Massacre de Paraisópolis
Em 1º de dezembro de 2019, nove jovens foram assassinados pela polícia no Baile da DZ7. Glória, por um acaso do destino, não frequentou o baile naquele dia. Ela estava em um ritual, “no mato e sem sinal”.
“Depois, quando abri o WhatsApp, vi a notícia. Cheguei no Paraisópolis, aquela muvuca, muita coisa acontecendo. Aí a gente articulou uma galera do Capão [zona sul] de vários movimentos, para puxar as manifestações dentro do território”, diz.
No ano seguinte, em 2020, Glória Maria fez parte da comitiva que representou o Brasil na CIDH (Comissão Interamericana de Direitos Humanos), no Haiti. Foram abordados temas como o genocídio da população negra, ações da polícia militar em São Paulo e a política de segurança pública do Rio de Janeiro.
Estiveram presentes também Fernanda Garcia, irmã de uma das vítimas da chacina em Paraisópolis; Douglas Belchior, da Uneafro Brasil; e Scheila Carvalho, advogada e defensora de Direitos Humanos.
“Foi um momento muito pesado. Eu não consegui não gritar, não chorar. É uma coisa que até hoje mexe muito comigo, porque foi no meu território.”
Estúdio na Rua do Bega
Atuar no território e ver o retorno por dentro é um dos motivadores para Glória. Na Rua do Bega, onde rolam os fluxos em Paraisópolis, nasceu o estúdio 7 Notas, em parceria com Mike e Mateus Almeida. No total, nove pessoas trabalham hoje no projeto.
O projeto oferece um espaço equipado com os recursos necessários para produção, abordando em aula temas como identificação de beats, criação e estruturação musical, dinâmica, flow e muito mais.
Ao final de cada formação, os artistas produzem um EP coletivo, que pode ser conferido no canal do YouTube do estúdio. As turmas são abertas mensalmente. Pessoas a partir de 14 anos, moradores de Paraisópolis, Real Parque, Jardim Colombo, Pinheiral e redondezas podem se inscrever.
Em 2023, o estúdio firmou uma parceria com a Canguru Records, selo da Universal Music Brasil. Agora com uma filial, a Canguru Paraisópolis, a gravadora musical realizará eventos, produções audiovisuais e outras atividades, fornecendo espaço para novos artistas da música urbana.
“Paraisópolis é um território que respira música”, enfatiza ela. Tem funk, rap, forró, samba e mais. O objetivo é justamente potencializar a criação musical e os talentos já existentes.
“O estúdio também surge como um espaço de acolhimento. Ele é uma casa, tem uma cozinha, três quartos, uma sala. Tem ainda uma biblioteca onde a gente pode descer, pegar um livro. A gente tá criando também a nossa identidade”, complementa.
Graduação no futuro
Interseccionar temas também move os projetos de Glória, que tem causado uma revolução na cena cultural local.
Atualmente, também trabalha na comunicação institucional da Énois, além da produção de conteúdos das redes sociais e colaborações na Agência Mural de Jornalismo das Periferias.
Muito ligada à ciência, ela fala do desejo de fazer graduação de química ou alguma área da biologia “para conseguir mesclar com a comunicação e comunicar com as pessoas do território”.
A jovem, que já foi citada em reportagem no jornal britânico The Guardian, acredita no poder de seu território e na militância diária pelos seus. Uma história de dores, de corre e sucesso, inspiração para que mais jovens das periferias e favelas reconheçam seus espaços.