Jesus foi condenado “sem o devido processo legal”, diz advogado
Julgamento tem semelhanças “surpreendentes” com pobres brasileiros nos tribunais, das detenções aos trâmites jurídicos
Série do Visão do Corre narra o nascimento, vida e morte de um Jesus periférico. Ele nasceu pobre, pregou entre os marginalizados e foi condenado injustamente. Reportagens mostram semelhanças com pessoas e quebradas brasileiras.
A prisão, julgamento e execução de Jesus “apresenta paralelos surpreendentes com a realidade atual do sistema judiciário brasileiro, especialmente no que diz respeito ao tratamento de grupos marginalizados”, diz o advogado Marcelo Aith.
Com carreira jurídica e docente, Aith é doutorando pela Universidade de Salamanca, na Espanha, mestre em Direito Penal pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), entre outros títulos.
Suas análises das relações entre o julgamento de Jesus e brasileiros periféricos perante a lei são perturbadoras e, infelizmente, atuais. Para o advogado, pobres, negros e pardos são “desproporcionalmente afetados pelo sistema penal”.
Na entrevista a seguir, Marcelo Aith desmonta o julgamento de Jesus, preso após uma solução cada vez mais comum, a delação, ou “caguetagem”, no vocabulário criminal.
Quais ilegalidades foram cometidas no julgamento de Jesus?
Segundo a lei judaica, especialmente conforme o Talmude, julgamentos criminais deveriam ocorrer durante o dia. No entanto, o julgamento de Jesus aconteceu durante a noite, o que já era uma violação das práticas legais daquele tempo. Além disso, nos casos de pena capital, as leis judaicas estipulavam que o julgamento deveria se estender por pelo menos dois dias, para permitir um tempo de reflexão e revisão das evidências. Jesus foi julgado e condenado no mesmo dia.
Ouvir o apelo popular foi uma violação jurídica?
A influência da multidão, que clamava pela crucificação de Jesus, foi um fator determinante no julgamento. Na lei romana, por exemplo, a justiça deveria ser aplicada de acordo com o direito e não com base na pressão ou no clamor popular. Pilatos, ao ceder às pressões da multidão, falhou em aplicar a justiça imparcialmente.
Jesus também não teve direito de defesa.
No contexto legal judaico, era um direito do acusado apresentar testemunhas em sua defesa. Este princípio assegurava que o acusado tivesse a oportunidade de contestar as acusações e apresentar sua versão dos fatos. A falta de testemunhas de defesa no julgamento de Jesus evidencia uma falha em conceder-lhe este direito fundamental.
A principal testemunha seria Judas?
Judas Iscariotes, que foi essencial para a prisão de Jesus ao traí-lo, não constou como testemunha de acusação no julgamento. Legalmente, seria esperado que uma figura chave como Judas oferecesse um depoimento que justificasse as acusações feitas contra Jesus. Sua ausência como testemunha formal compromete a legitimidade do processo.
Como acontece atualmente, Jesus foi condenado “sem o devido processo legal”?
A semelhança com o julgamento de Jesus reside na ausência de evidências concretas que acompanhem a acusação principal, baseando-se fortemente no testemunho de Judas sem o devido processo legal. Assim como no passado, é fundamental que sistemas judiciais modernos estabeleçam práticas que equilibrem o uso de delações com rigorosas investigações, garantindo justiça e equidade para todos os envolvidos.
A delação é outra coincidência com o contexto contemporâneo?
A delação de Judas no julgamento de Jesus Cristo levanta questões que ecoam em práticas modernas observadas em sistemas policiais, como o brasileiro. Historicamente, delações têm sido uma ferramenta controversa na resolução de crimes. No Brasil, essa prática, conhecida popularmente como “caguetagem”, muitas vezes substitui investigações mais extensas, especialmente em casos que envolvem pessoas pretas, pobres e periféricas.
O julgamento de Jesus mostra que os marginalizados acabam sendo os mais condenados?
O julgamento de Jesus Cristo, ocorrido há mais de dois mil anos, apresenta paralelos surpreendentes com a realidade atual do sistema judiciário brasileiro, especialmente no que diz respeito ao tratamento de grupos marginalizados. Essa comparação lança luz sobre questões persistentes de desigualdade e injustiça no âmbito legal.
Quais questões?
Assim como Jesus, que pertencia a um grupo marginalizado na sociedade de sua época, muitos brasileiros enfrentam um sistema que parece predisposto contra eles. O julgamento de Cristo, marcado por irregularidades processuais e pressão popular, reflete-se em casos contemporâneos onde o devido processo legal é frequentemente negligenciado, especialmente para indivíduos de baixa renda ou pertencentes a minorias étnicas.
Outra semelhança seria a execução por forças oficiais?
A execução de Jesus por agentes oficiais de segurança também encontra ecos perturbadores na realidade brasileira. Relatórios de organizações de direitos humanos, como a Anistia Internacional, apontam para um padrão de uso excessivo da força por parte de agentes de segurança, particularmente em comunidades pobres e periféricas.
Jesus e pessoas pobres se encontram na injustiça penal?
O caso de Jesus, condenado sem provas concretas, ressoa em situações atuais onde acusados são julgados e condenados com base em evidências circunstanciais ou testemunhos duvidosos, um problema que afeta desproporcionalmente as camadas mais vulneráveis da sociedade. A comparação entre o julgamento de Jesus e a realidade atual do sistema judiciário brasileiro serve como um lembrete poderoso da necessidade contínua de lutar por justiça e igualdade perante a lei.