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Mães que perderam filhos para violência no RJ criam rede de apoio

No recém lançado livro Nossos Filhos Têm Mães, pesquisadora Giulia Escuri conta a história da militância das famílias vítimas do Estado

29 jul 2022 - 16h07
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Grupo de mães representando a Rede de Mães e Familiares Vítimas da Violência de Estado na Baixada Fluminense no lançamento de Nossos Filhos Têm Mães
Grupo de mães representando a Rede de Mães e Familiares Vítimas da Violência de Estado na Baixada Fluminense no lançamento de Nossos Filhos Têm Mães
Foto: Divulgação

Em 31 de março de 2005, um grupo de policiais militares, aparentemente descontentes com Paulo César Lopes, novo comandante do 15º Batalhão de Polícia Militar de Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, que havia afastado cerca de 60 PMs por desvio de conduta, resolveu praticar uma espécie de vingança através do terror. Circulando de carro noite e madrugada adentro por municípios como Nova Iguaçu e Queimados, o grupo deixou um rastro de sangue infame, com 29 assassinatos — acontecia a chamada “Chacina da Baixada”, a maior chacina ocorrida na história recente do estado do Rio de Janeiro. As vítimas parecem ter sido escolhidas a esmo, e dos 11 policiais denunciados pelo Ministério Público do Rio de Janeiro, apenas cinco foram condenados, quatro deles por homicídio e um por formação de quadrilha.

Giulia Escuri, moradora de Nova Iguaçu, tinha 8 anos na época, e relata ter ouvido os tiros durante a noite, além da agonia de esperar o pai, que voltava do trabalho e estava na rua no momento dos assassinatos. Uma década e meia depois, Giulia voltaria às memórias da chacina em seu livro Nossos Filhos Têm Mães (2022, Editora Telha), fruto de sua dissertação de mestrado em Ciências Sociais na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). em que aborda a história da violência de Estado na Baixada Fluminense e especialmente os movimentos de mães que buscam justiça pelos filhos assassinados.

Assim como no caso dos Crimes de Maio de 2006 em São Paulo, que acabaram originando as Mães de Maio e grupos assemelhados que vieram depois, a Chacina da Baixada estimulou a criação da Rede de Mães e Familiares Vítimas da Violência de Estado na Baixada Fluminense. Como outra rede, a Rede de Proteção e Resistência Contra o Genocídio, a organização fluminense também busca fornecer auxílio psicológico e jurídco para famílias que tenha sido atingidas por esse tipo de violência; promove a visitação de mães e familiares de vítimas em comunidades periféricas da região; mobilização e articulação de atos públicos pelo direito à memória e justiça e a realização de debates e rodas de conversa.

Giulia explica que há uma certa tradição na violência na Baixada Fluminense, que começa com a atuação de grupos de extermínio na ditadura militar mas se estande para dentro do período de redemocratização. “Hoje você tem as milícias, mas não é necessariamente novo. Desde os anos 1990 você teve diversos prefeitos se elegendo na região a partir de campanhas onde se promoviam como ‘matadores’, que estavam lá para ‘limpar’ o município — e a gente sabe o que significa esse tipo de limpeza.”

Essa política se traduz em números assustadores. De acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 11 dos 13 municípios da Baixada Fluminense estão entre os 100 mais violentos do Brasil. “Segundo o Instituto de Segurança Pública (ISP), dos cinco batalhões da PM que mais matam no estado do Rio de Janeiro, quatro estão na Baixada: Mesquita, Queimados, Belford Roxo e Duque de Caxias. O Iser (Instituto de Estudos da Religião} publicou que de 2010 a 2015 a taxa de homicídios na Baixada foi de 80 mortes por 100 mil habitantes, enquanto no município do Rio de Janeiro foi de 40 para cada 100 mil. Desses assassinados na Baixada, 82% são pessoas negras, majoritariamente homens”, exemplifica Giulia.

Nossos Filhos Têm Mães, acima de tudo, é um livro sobre memória: a memória de pessoas que se foram e que serve de combustível para mulheres como Luciene Silva, fundadora da Rede, que perdeu o filho Raphael na chacina de 2005. Giulia explica que o processo de manutenção da memória dos mortos faz parte de uma necessidade maior, a de se legitimar as vidas que foram perdidas: “a memória acontece no sentido de legitimar essa perda, buscar com que ela seja passível de justiça, para tentar fazer com que mortes como essa não sejam repetidas. E também há essa busca pela memória para aliviar a dor”.

Muro com grafite em Nova Iguaçu em homenagem a jovem morto na Chacina da Baixada
Muro com grafite em Nova Iguaçu em homenagem a jovem morto na Chacina da Baixada
Foto: Giulia Escuri/Reprodução

Um ritual de memória importante para as Mães da Baixada, que foi interrompido pela pandemia, era a caminhada promovida por elas todos os anos, da qual Giulia participou em 2019, no começo da sua pesquisa. “Elas vão a pé de Nova Iguaçu a Queimados, refazendo o trajeto da chacina e parando em cada ponto onde uma pessoa foi morta. Eu estive na última caminhada, e é duro você ver as mães caminhando por onde os filhos foram assassinados. Elas levam flores, falam no microfone, soltam fogos na hora da lista de presença. Quando se mantém essa memória, a cada ano que passa você vai ressignificando a morte, vai reafirmando que aquela vida era digna de ser vivível.”

Outro aspecto da memória é que, ao lado da militância, segundo Giulia, ela ajuda a amenizar a dor. Nívia Raposo, mãe de Rodrigo Tavares, morto por milicianos em Nova Iguaçu em 2015, é citada como exemplo: “a capa do livro tem girassóis por causa dela”, conta a autora. “O filho plantava girassóis junto com ela, e agora ela segue plantando e diz que, toda vez que vê um, lembra dele.” Em seu depoimento no livro, Nívia explica o sentimento: “você planta um com uma semente e quando o girassol nasce, ele aponta para o sol o tempo inteiro, quando ele morre, você vê a quantidade de sementes que tem em uma flor. São muitas sementes, então é como se fosse a extensão da corrente do bem, a gente vai multiplicando as coisas”.

Porém, para além da memória, a luta por justiça é mais profunda, e as mães se encontram na luta por uma causa que vai além das suas questões individuais. “A justiça para essas mães não está no sentido da restituição, de algum valor financeiro. Elas dizem que é impossível que o Estado repare essas perdas”, explica a pesquisadora. “A justiça que elas buscam é ver uma diminuição nos assassinatos na Baixada Fluminense, elas querem que as polícias e esses grupos atuem de outra forma. Muitas sabem que os policiais nem vão ser julgados, mas vão continuar lutando para que nenhuma outra mãe tenha que entrar na Rede”.

O momento mais tocante de Nossos Filhos Têm Mães fica nas últimas páginas, depois da conclusão e das referências bibliográficas. Ali estão compilados sete depoimentos, recados, cartas enviadas por seis mães e uma irmã de jovens vítimas da violência de Estado na Baixada Fluminense. “O apêndice final é uma tentativa de manter essa memória viva. Fazer com que essa morte seja lembrada”, conta Giulia. “Eu pedi para que elas escrevessem esses recados delas falando diretamente para os filhos e irmão. Foi muito duro de organizar isso, eu não consigo reler.”

 A autora do livro, Giulia Escuri
A autora do livro, Giulia Escuri
Foto: Divulgação

Um trecho do poema que Luciene Silva escreveu para o filho Rapahel resume bem o espírito da Rede de Mães e Familiares Vítimas da Violência de Estado na Baixada Fluminense:

“Mas temos uma esperança,

Tal qual uma criança,

Que num futuro adiante,

Com um povo consciente e atuante,

Mudaremos o rumo dessa história,

Transformando derrota em vitória,

Construiremos um país diferente,

Justo, feliz e decente,

Orgulhoso de seus dirigentes.

Assim valerá a pena ter transformado,

Luto em Luta”

Ponte
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