Narrador realiza sonho na Copa e lembra trajetória difícil: "ganhava R$ 50 por jogo"
Criado na periferia da zona sul de São Paulo, locutor esportivo Marcelo do Ó é a voz da Bandnews FM na Copa do Mundo do Catar
Aos 43 anos, Marcelo Santos do Ó, o Marcelo do Ó, é um dos locutores esportivos da nova geração. Hoje, no microfone da rádio Bandnews FM, comanda as transmissões da emissora direto do Catar. Se o momento pode ser considerado o melhor de sua carreira, ele lembra que ralou muito para chegar até lá.
"Foi um caminho longo para chegar até aqui. Eu nasci no Cambuci e fui para o Capão Redondo muito novinho, com 4 anos. Foi a primeira casa própria do meu pai. Meu pai pernambucano, trabalhou a vida toda no colégio Rio Branco. Conheceu minha mãe lá. Começou como ajudante de limpeza, porteiro, e se aposentou no ano passado como supervisor de serviços gerais. Minha mãe foi doméstica, babá, costureira... Foi nessa realidade que eu cresci", relembra.
Segundo ele, a paixão pelo rádio despertou cedo e partiu do costume de ouvir transmissões esportivas com seu pai. Lá pelos 12 anos já tinha em mente o que gostaria de fazer da vida: ser locutor esportivo.
"Eu estava ouvindo aquele Corinthians e Bahia, semifinal do Brasileiro de 1990. Estava no estádio, ouvindo o Oscar Ulisses e ali, no segundo gol do Neto, naquela festa toda, eu pensei: quero fazer isso. Quero trabalhar na rádio Globo, com o Oscar Ulisses. O desejo de infância se realizou 25 anos depois, mas esta é uma história para ser contada mais adiante.
Voltando aos anos 90, do Ó conta que seu pai foi buscar na rádio Globo um disco do Corinthians campeão, com trechos de narrações da campanha corintiana, que deu o primeiro título brasileiro ao clube.
"Eu pegava o disco e ficava repetindo, narrando, jogando botão e repetindo. Botei na cabeça que eu iria trabalhar lá. Botei na cabeça isso. Eu ficava em casa narrando o tempo todo", lembra.
Na época, estudava em um colégio municipal e conseguiu uma bolsa de estudos no Colégio Rio Branco, onde seu pai trabalhava. Do Ó lembra que seu pai queria que ele fosse advogado, mas ele tinha outros planos.
"Eu vou para lá, eu vou ser jornalista, vou ser narrador de futebol e vou trabalhar na rádio Globo. Eu estava indo da sétima para a oitava série, em 1992."
A ida para o Rio Branco, segundo o narrador, abriu a sua cabeça para muita coisa que "eu nem sabia que existia". "Era outra realidade. Na época saiu aquela matéria de que o Capão Redondo era o bairro mais perigoso do mundo, aí os caras me mostravam o jornal. Como você mora num lugar desse? Virei um adotado da turma", diz.
Do Ó lembra do seu primeiro emprego, em que trabalhou em uma central de pager, no final dos anos 1990. Depois, por meio de um amigo que estudava com ele, foi para a editora Segmento, onde trabalhou como arquivista de fotografia e em seguida foi subeditor de uma das publicações.
"Nesse período eu ia a estádio para ver jogo, comprava ingresso e levava um gravadorzinho. E ficava na arquibancada narrando o jogo. Eu não conhecia ninguém de rádio. Vivia esse negócio 24 horas por dia. Mas o tempo foi passando e eu não conseguia conhecer ninguém de rádio", diz.
A história começou a mudar quando soube de um curso de jornalismo esportivo com o jornalista Flávio Prado. "A inscrição custava R$ 300 e precisei parcelar em trê vezes: três cheques de R$ 100", diverte-se.
Nesse curso ele participou de aulas de narração e por indicação de uma colega foi para a Rádio ABC, onde fazia o plantão esportivo. "Eram 3 horas de viagem para chegar até lá e paralelamente trabalhava em uma assessoria de imprensa."
O ano era 2004, em que surpreendentemente o Santo André venceu o Flamengo por 2 a 0 no Maracanã, depois de um empate de 2 a 2 no antigo Parque Antártica, e conquistou a Copa do Brasil. "Eu fiz o plantão esportivo nessa partida. Foi uma das primeiras vezes que eu falei no ar. Umas três rodadas depois um narrador faltou e eu narrei minha primeira partida: Santo André 1 x 1 Mogi Mirim, pela série B do Brasileiro. Acabou o jogo, passei 2 horas chorando dentro do ônibus de emoção."
Do Ó lembra que algumas semanas depois recebeu um telefonema de Flávio Prado, que estava montando uma equipe esportiva para a rádio Piracema FM, de Pirassununga, no interior de São Paulo. "Ele me chamou e eu fui para fazer os jogos do Brasileiro da Série A. Aí eu fazia de São Paulo os jogos para Pirassununga. Na Piracema FM. Ganhava R$ 50 por jogo. Mas eu continuei na assessoria. Precisava pagar as contas", diz.
A experiência fez com que ele começasse a ir presencialmente aos estádios da capital, como Pacaembu, Morumbi, o antigo Parque Antártica, o Canindé.
"Fiz o título do Santos em 2004 e o Paulista em 2005. Aí o Bruno Prado (filho de Flávio e comentarista da equipe) me indicou para a 105 FM, onde eu conheci o Everaldo Marques.
"Minha infância foi de periferia, mas nunca faltou nada. Era simples, na escola pública, mas nunca faltou nada. Meu pai não me viu crescer, trabalhava de domingo a domingo. Aquele sofrimento controlado. Difícil, mas na cabeça dele não passava que eu pudesse chegar até aqui. As coisas iam acontecendo comigo e eu ia pegando".
Foram quase 10 anos na 105 FM. Em paralelo, do Ó trabalhou no portal Terra. Participou da Copa do Mundo de 2006, da redação em São Paulo, e em 2010 foi para a África do Sul, já como repórter. Na Copa de 2014 participou das transmissões pela 105 FM.
Sonho de trabalhar na rádio Globo
"Eu falei com o Oscar Ulisses pela primeira vez em 2011. Fui lá levar o meu CD, com as minhas narrações. Na época um dos narradores tinha saído. Fui na sala dele morrendo de medo". Naquele momento não foi selecionado.
Três anos depois outro narrador saiu da equipe e Oscar ligou para ele, desta vez para um convite. "Eu não tenho muita grana, mas gostaria que você viesse trabalhar com a gente."
Ali seu sonho estava se realizando. "Você não vai acreditar. Tudo o que eu fiz na minha vida até hoje foi para você me fazer esse convite. Ali era a história da minha vida. Topei na hora".
Do Ó lembra que a sua primeira narração foi em 6 de fevereiro de 2015, em uma partida entre São Paulo e XV de Piracicaba. "Fiquei até 2020. De terceiro narrador eu passei a segundo em 2018, quando o Marcelo Gomes saiu. Paralamente fazia trabalhos para a RedeTV!. As coisas foram acontecendo".
Nessa época, do Ó lembra que começou a receber elogios no ar de ninguém menos que Milton Neves, da concorrente rádio Bandeirantes. Ali, o grito de gol com o bordão "caçapa" já estava estabelecido. "O Milton falava que tem um cara que grita 'caçapa', que lembra muito quando ele jogava bilhar em Muzambinho."
E assim, em 2020, ele chegou na Bandnews FM. "Vim como segundo narrador, veio a pandemia e depois disso assumi como primeiro narrador. Nesse momento a coisa já estava mais séria e eu já vinha me preparando. Fui atrás de fonoaudiologia, de um cara para melhorar a minha escrita. Não basta só fazer o trabalho direito. Você tem de criar a figura do narrador titular."
Agora, do Ó está no Catar, na cobertura da Copa do Mundo 2022. Narrou a estreia do Brasil, na vitória de 2 a 0 contra a Sérvia, seu primeiro jogo da seleção em um Mundial.
"Quando cheguei no Lusail (estádio) foi difícil segurar a emoção. Eu cheguei 5 horas antes. Não teve jeito para não chorar. Saiu uma transmissão muito legal. O gol do Richarlison (...) Olha onde eu cheguei. A última vez que o Brasil foi campeão eu estava em casa. Quem sabe não narro uma final aqui", projeta.
Ele afirma que seus pais moram no Capão Redondo até hoje. "É um orgulho danado. Quando eu comecei na Rádio Globo, meu pai parou o carro e começou a chorar, que não conseguia dirigir."