Por que é tão difícil entregadores terem seu próprio aplicativo?
Greve dos motoboys chama a atenção para a dificuldade em gerar renda usando tecnologia a favor dos trabalhadores
Desenvolver um aplicativo de entregas mais vantajoso aos motoboys e ciclistas enfrenta desafios financeiros, tecnológicos e organizacionais, além de depender de políticas públicas e apoio estatal. O trabalho de entregadores é mais complexo do que o de transporte de passageiros por aplicativo.
Existem pelo menos três obstáculos para colocar na praça um aplicativo de entregas mais vantajoso para os trabalhadores do que para as empresas: grana, organização do negócio e tecnologia, desafios que estão interligados.
É preciso ter recursos financeiros para investir no desenvolvimento de um aplicativo. Mas esse não é o principal problema, o custo pode ser diminuído ou até mesmo eliminado com os chamados “softwares livres”, gratuitos.
“Mas ainda temos o custo com servidores, que são serviços caros”, diz Aline Os, fundadora do Señoritas Courier, coletivo de entregas de bicicletas que emprega mulheres e trans em São Paulo.
Elas trabalham há um ano para ter um aplicativo próprio, “mas a plataforma segue sem ativação, por falta de recursos”, informa a fundadora.
Tecnologia não pode copiar o mercado
“O desenvolvimento dos aplicativos está extremamente concentrado na mão de pouquíssimas empresas de tecnologia da informação”, lembra Vanessa Monteiro Cunha, doutoranda que pesquisa o trabalho em plataformas na Universidade de Campinas (Unicamp)
“Com o mercado dominado por uma empresa, os aplicativos de entrega precisam ir para um outro caminho”, aponta Rafael Grohmann, da Universidade de Toronto e fundador do DigiLabour. Um outro caminho seria a participação de trabalhadores na criação de novos aplicativos.
Porém, “sem nosso conhecimento de como criar uma forma de trabalho que cuide das pessoas e pague melhor, apenas replicaria o modelo que precariza”, alerta Aline Os, da Señoritas Courier.
Cadastros de clientes, localização, perfis de consumo, entre outros dados, são fundamentais para plataformas na internet. “As empresas coletam e comercializam isso a peso de ouro”, diz Gabriel Simeone, desenvolvedor de software, do núcleo de tecnologia do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST).
Problema organizacional e escala do negócio
Segundo Rafael Grohman, “construir coletivos e cooperativas que sejam fortes e que tenham realmente outros valores, leva um tempo”. Ele lembra que é muito mais difícil organizar cooperativas de entrega do que de transporte de passageiros.
“De motoristas, só precisa ligar ele e o passageiro, enquanto, para entregas, tem que unir os estabelecimentos. Isso faz com que as coisas sejam mais difíceis”. Há ainda um problema de escala.
“O iFood tem milhares de empresas na mão, tem escala. Para ter escala tem que ter grana para captação de empresas a longo prazo. É ilusão achar que alguém vai sair batendo na porta dos restaurantes”, explica Simeone.
Ele lembra que o Contrate Quem Luta, que conecta militantes do MTST para prestarem serviços, só foi possível pelo tamanho do movimento social, a tal da escala: são 22 mil pessoas organizadas na Região Metropolitana de São Paulo.
Políticas públicas fariam enorme diferença
Iniciativas governamentais poderiam facilitar a criação de aplicativos e plataformas para entregas, e impulsionar negócios, investindo em servidores, por exemplo. “Soberania digital é sobre isso, né?”, pergunta Aline Os.
Há problemas fiscais a serem enfrentados. Trabalhadores organizados em cooperativas pagam mais impostos do que aplicativos, que se apresentam como empresas de tecnologia, e não de transporte.
“Com apoio do Estado, seria fundamental que tivesse uma política pública de incubadoras para aplicativos”, diz Simeone. “O campo de mediação entre aplicativos, restaurantes e trabalhadores teria que estar sendo ocupado por política pública”, defende.
Apesar das dificuldades, ele é otimista. “Quando maiores forem os aplicativos, maior a categoria e maiores as chances de organização”, como os “breques”, paralisações organizadas por entregadores de aplicativos, crescentes no Brasil inteiro.