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Preta Ferreira: da luta por moradia à luta contra o cárcere

Escritora, cantora e ativista relembra 3 anos de sua prisão com novos planos para disco, filme e projeto sobre prisões de mulheres

29 jun 2022 - 11h00
(atualizado às 18h30)
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Foto: Daniel Arroyo

O sol já foi embora e o frio daquela quarta-feira começa a se intensificar quando Preta Ferreira, 37 anos, atravessa o estreito portão do número 427 da rua Álvaro de Carvalho, centro da cidade de São Paulo. Em menos de dois minutos dentro da Ocupação 9 de Julho — sua casa, inspiração política e berço da sua veia artística — a mulher de crespos cabelos presos em um coque e um largo sorriso cumprimenta quase duas dezenas de pessoas entre homens, crianças, mulheres e idosos.

Nascida no Alto Santa Terezinha, periferia da zona sul de Salvador, Bahia, e batizada como Janice Ferreira da Silva, Preta chegou a São Paulo na virada do século XXI para morar no edifício que passaria a ser um referencial na luta por moradia na maior cidade do país. Muito além da questão habitacional, o espaço também é um importante ponto de cultura com exposições de artistas renomados como Nelson Félix e Virgínia Medeiros, e shows de artistas como Criolo e Chico César. 

Foto: Daniel Arroyo

A efervescência cultural do espaço veio a partir da insatisfação da então adolescente com a vizinhança. Hoje tradicional no calendário dos festejos de São João da cidade, a primeira festa junina da Ocupação 9 de julho foi ideia dela, motivada pelo preconceito que a vizinhança tinha com as pessoas que moravam no antigo edifício do INSS (Instituto Nacional do Seguro Social) há 20 anos.

“Eu estudava no [colégio] Caetano de Campos, que, apesar de ser um escola pública, era elitizada naquela época. Eu nunca ia nas festas dos amigos de sala, então resolvi fazer uma festa de São João aqui no prédio e chamar eles e outros vizinhos do bairro. Deu certo. Fazemos esta festa até hoje e foi a partir daí que se iniciou também a minha militância”, conta.

Também foi em um dia 24 de agosto, data que os católicos lembram São João Batista e os umbandistas celebram o orixá Xangô, Deus da Justiça, que Preta Ferreira começou a viver os piores dias da sua vida. Nas primeiras horas daquela manhã de 2019, junto com sua mãe Carmen Silva e o irmão Sidney, a ativista foi presa acusada pela Polícia Civil de extorsão e associação criminosa por supostamente cobrar de forma violenta para que moradores da ocupação pagassem para morar no edifício.

Os 108 dias que passou no cárcere mexeram com a cabeça da ativista. Se antes ela já corria pelos que lutam para ter um lugar digno como casa, a partir daquele momento, ela também abraçou a causa dos que vivem sob a custódia do Estado no sistema prisional, mulheres que estiveram literalmente ao seu lado no pior momento da sua vida.

Foto: Daniel Arroyo

Os dias de encarceramento de Preta Ferreira são contados no livro “Minha Carne: Diário de uma Prisão”, onde ela narra sobre o processo que a levou para trás das grades e também sobre as questões emocionais vividas por quem está cumprindo pena no Brasil. Além dos relatos, há também o lado artístico na obra, com poemas e letras de músicas.

“Eu saí da prisão com um livro, um disco, um filme e o projeto Liberdades Pretas, onde vou a várias prisões femininas por todo Brasil. Escrevi esse projeto ainda na cadeia. Eu vivi a realidade de dentro das prisão e pude ver as carências do sistema carcerário e toda a desumanização que as pessoas passam lá dentro. Ninguém me contou, eu vivi isso”, afirma Preta.

Além da entrega do seu livro para as pessoas que estão presas, o projeto visa também despertar a vocação literária em mulheres que nunca tiveram oportunidade de relatar as suas vivências no cárcere.

“Dou para elas um livro em branco e peço que para que elas coloquem ali as suas experiências. Fui ao Acre recentemente e três mulheres presas lá estão escrevendo seus livros. Estou feliz porque vou escrever o prefácio de todos eles”.

Foto: Daniel Arroyo

A ativista conta que viu vários casos de pessoas que estão cumprindo penas muito mais rigorosas do que os crimes que cometeram. Mesmo formada em publicidade, ela diz que ganhou muito conhecimento jurídico dentro da prisão e, com isso, conseguiu ajudar outras pessoas a ganhar a liberdade. “Aproveitava que muita gente ia me visitar e pedia para analisarem o caso das companheiras de cela”.

Preta se define com “artevista” (mistura de “arte” e “ativista”), já que, mesmo com todo seu histórico de militância, nunca deixou as artes de lado. Ela afirma que a música chegou na sua vida antes de qualquer luta social e que, mesmo nas dentro das suas lutas políticas, diferentes expressões artísticas sempre estiveram presentes.

Em paralelo ao trabalho com as mulheres do sistema penitenciário, Preta retornou ao seu trabalho com música e juntou um time de músicos, incluindo Vinícius Leso (que toca com Bia Ferreira) e Guri Assis Brasil (da banda de Otto) para gravar seu álbum de estreia, previsto para ser lançado até o fim de 2022.

“Sou cantora e compositora desde criança. Comecei a trabalhar com isso adolescente e foi através do canto que me descobri atriz”, diz Preta, que atuou em filmes como Era o Hotel Cambridge (2016), Para Onde Voam as Feiticeiras (2018), Mesmo com Tanta Agonia (2018), e Receita de Caranguejo (2020), pelo qual venceu a categoria de Melhor Atriz no Festival de Gramado. Está previsto também um filme contando os dias de Preta na prisão, baseado em seu livro, mas ainda sem data para lançamento.

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