Pretos e pardos pobres estão nas áreas mais alagadas do RS
Dados constam em mapas produzidos por pesquisadores com números do IBGE. “O genocídio é histórico”, diz líder quilombola
O Observatório das Metrópoles de Porto Alegre mostra que a população preta tem “concentração expressiva” nas áreas mais atingidas pela enchente na capital gaúcha e em cidades como Canoas, Novo Hamburgo e São Leopoldo. População preta e parda gaúcha aumentou entre 2010 e 2022, segundo Censo do IBGE.
Mapa produzido pelo Observatório das Metrópoles de Porto Alegre mostra que a população preta tem “concentração expressiva” nas áreas mais atingidas pela enchente na capital gaúcha e Região Metropolitana.
Em Porto Alegre, nos bairros Humaitá, Sarandi e Rubem Berta, onde a população tem feito manifestações cobrando o poder público, pretas e pretos perderam tudo. No Humaitá, a construção da Arena do Grêmio não incluiu obras complementares de infraestrutura, que mitigariam enchentes, prometidas e nunca realizadas.
“Existe uma narrativa de que apresentar estes dados é dividir a população. Mas não somos nós que dividimos, a sociedade é que previamente relegou populações negras e pobres a áreas suscetíveis a inundações”, diz Paulo Roberto Rodrigues Soares.
Soares é um dos responsáveis pelo mapa. Professor titular do Departamento de Geografia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, ele diz que a presença da população negra nas áreas alagadas tem relação com a saída de gente pobre do centro de Porto Alegre.
“Porto Alegre é uma das cidades mais segregadas do Brasil. A falta de acesso e de estrutura em espaços onde há um grande contingente de pessoas negras faz com que sejam as mais afetadas neste momento”, diz a jornalista Naíla Cazuza, diretora da Associação Satélite Prontidão, clube negro centenário.
Segundo o Censo do IBGE, a população preta e parda de Porto Alegre subiu de 20,2% para 26% entre 2010 e 2022 (o período e a fonte são os mesmos para os próximos dados populacionais da reportagem).
Pretos e pardos aumentam no RS
Na cidade de Canoas, o bairro Mathias Velho, que mais sofreu com a enchente, especialmente no extremo oeste, tem expressiva população negra – ela subiu de 14,3% para 21,2% no município.
“A enchente provou que o racismo ambiental existe, é real. A população preta está em áreas de alagamento, é a que mais vai demorar para reconstruir o pouco que tinha. Abre mais o abismo social do Rio Grande do Sul”, diz Jaqueline Pereira, artista e ativista do hip hop.
Em Guaíba, o bairro Santa Rita concentra grande proporção de pretas e pretos, que cresceram de 16,8% para 22,5% na população do município.
“Esse processo aconteceu no planejamento da cidade, nos anos 60 e 70, com uma ideia de cidade mais elitizada. Promoveu remoções e a migração para a região metropolitana, tornando a moradia mais cara, os regulamentos urbanísticos mais rígidos para fazer loteamentos populares”, explica o pesquisador Soares.
Maioria da população negra atingida
Há pelo menos dois municípios gaúchos em que os bairros atingidos pela enchente têm maioria de população preta e parda, como o Santo Afonso, em Novo Hamburgo. Na cidade, afrodescendentes foram de 9,3% para 15,2%.
Em São Leopoldo, onde a população preta cresceu de 13,7% para 21,2%, o bairro Santos Dumond ficou alagado.
Para o pesquisador do Observatório das Metrópoles, o debate sobre cidades provisórias, “tal qual campos de refugiados”, foi colocado porque o poder público não pretende resolver o problema utilizando o parque imobiliário ocioso. “Vão buscar uma solução provisória”.
Ativista negra destaca três situações
Ana Cristina Medeiros de Lima, presidente do Centro de Educação Ambiental (CEEA Bom Jesus), ficou incomodada com o desconhecimento do presidente Lula quanto aos pretos e pretas nos abrigos.
A ativista lembra que os programas televisivos Profissão Repórter e Altas Horas não mostraram pessoas negras. “Reforçaram a invisibilidade. Isso é grave, é urgente ser chamado a atenção. Estamos no estado mais racista do Brasil”, diz Cris Medeiros.
Segundo Luís Rogério Machado, o Jamaica, liderança do Quilombo dos Machado e da Frente Quilombola do Rio Grande do Sul, “o genocídio do povo preto é histórico, desde o sequestro na África”.
Ele lista locais onde o povo preto teve perdas materiais e de vidas, coincidindo com os mapas do Observatório das Metrópoles: Canoas, “a maioria do pessoal que morreu”; região do Sarandi, nos bairros Asa Branca, Vila Elizabeth, Brasília e União.
“São quinhentos e vinte e quatro anos de genocídio. Na enchente, não poderia ser diferente”, diz Jamaica.