Rima que vem das ruas forja a poesia oral de Paraty
Cidade promove a maior festa da literatura do país, que termina hoje, exaltando a literatura tradicional, impressa
“A cultura de rua que vem se instalando em Paraty, cada vez mais forte, é uma nova aurora da literatura. Não precisa mais ser formal, eu posso fazer uma poesia com o que está na minha mente e tocar o coração de milhões de pessoas. Eu acredito que o hip hop traz essa simplicidade.”
A declaração de Babi Pietra, 25 anos, rapper de Paraty, resume a cena da nova produção literária da cidade: independente, feita pelas vozes de jovens que conquistam espaço fazendo rap e promovendo batalhas de rimas. Durante todos os dias e noites da Feira Literária Internacional de Paraty, que termina hoje, quase nada se viu dessa produção poética, oral, altamente politizada, feita no improviso nas ruas ou forjada em estúdios periféricos. Homens, mulheres, gays e indígenas fazem crescer a maior manifestação de literatura de Paraty.
Os manos se reúnem semanalmente na Praça da Matriz, onde também rimam as mulheres, que se juntam preferencialmente na Praça da Bandeira, animadas pelo movimento H2M, o Hip Hop das Minas. Feito por elas, há também o Slam da Retomada. Existem ainda inúmeros rappers, estúdios, oficinas de rima em escolas, eventos em favelas, desejos de escrita de livros e gravação de músicas – inclusive com, ao menos, um representante indígena, o rapper Xondaro. A cena tem mais ou menos dez anos, com precursores como DJL, da Esquina do Rap (que já faleceu). São artistas de comunidades periféricas com Mangueira, Ilha das Cobras, Condado.
Mulheres organizadas conquistando espaço
Segundo Luana Roberta Nonato Rodrigues, mulheres passaram a organizar batalhas de rima por necessidade de gerar um “espaço de aprendizagem confortável”. Ela tem 25 anos, mesma idade de Babi Pietra; é autônoma, vendedora de café, salgadinhos e bolo, mãe solo de um menino e moradora da Mangueira.
Luana sempre cola nas batalhas da Praça da Bandeira e em instituições educacionais, para ministrar oficinas de rima, como na escola pública Pequenina Calixto e Escola do Campinho, entre outras. Ela e outras rimadoras desenvolveram um método para ensinar poesia a estudantes.
Apesar das conquistas, há muito a crescer, começando pelo equipamento de som para batalhas de rima – as dificuldades materiais não impedem os encontros, que podem acontecer à capela, quando não conseguem microfones e caixa de som emprestados.
Racismo transformado em poesia
Ariane da Silva Souza, a rimadora Pérola, 18 anos, é garçonete e sonha em concluir o livro A Minha Dor, sobre o racismo que sofreu na escola. “Eu comecei a perceber que minha dor poderia se transformar em coisas lindas, comecei a fazer poesias. Defino minha literatura como marginal e antirracista”, resume Pérola.
Também politizada, Kamily Güyra, de 19 anos, foi influenciada por um amigo que fazia rap. Começou a escrever poesia no ensino médio. “Minha escrita é mais marginal, eu gosto de abordar temas políticos com clareza usando linguagem informal e livre, para melhor compreensão. Ao mesmo tempo, minha poesia é feminista.”
Cena cresce e inclui
Para o rapper Viny, que se interessa por música desde os dez anos de idade – tendo feito seu primeiro show aos 15 –, as manifestações culturais periféricas estão sendo mais respeitadas em Paraty. Turistas e moradores se alegram vendo a juventude mostrar talento no improviso.
Para Viny, “o rap é uma forma de despertar a verdade no ouvinte, expressar seu sentimento na arte e cantar com a alma. Salva vidas, eu sou a prova, por isso tem um peso enorme no cenário literário e musical”.
A produção poética das ruas tem artistas que nasceram em Paraty e gente vindo de fora, como o rimador Gomez 013, que aterrissou na cidade em 2018, vindo do extremo da zona sul da capital paulista. Neste ano, lançou seu primeiro álbum, Quem é Esse?, disponível em todas as plataformas digitais. “Cada vez tem chegado mais gente não só nas batalhas de rima, como nas produtoras e estúdios, seguindo uma crescente que acho importante para a vida de cada um que faz parte desse movimento.”
A cena inclui representantes dos povos originários, como o rapper Xondaro, de 19 anos, nascido e criado na Aldeia Itati, da etnia guarani-mbya, onde moram cerca de 40 famílias. Xondaro significa “guerreiro”. Ele toca violino e faz rap misturando português e a língua do seu povo, ligado à música ancestral.
“Aqui na aldeia a gente vive e se fortalece através da reza e dos cânticos”. A família do rapper aceita “de boa” sua opção musical. Ele participou de batalhas de rima na cidade, eventos no Sesc, em casas de cultura, deu palestras. Gosta de ouvir outros manos indígenas que fazem rap. Sobre a cena em Paraty, considera que “está crescendo, para mim é ótimo, dá exemplo pro jovem”.
Um estúdio dentro da favela
Na Casa da Juventude, centro cultural na Ilha das Cobras, havia um mezanino pouco usado. O funcionário e fotógrafo Wanderson Santos, 31 anos, o Formiga, que atua no território ensinando a arte de câmeras e lentes, pensou que poderia montar um estúdio no local. A prefeitura ajudou a forrar de madeirite, jovens vieram pintar e montaram o equipamento, parcialmente doado.
Estava pronto o Quadra II, mais um local para gravações de rap. Existem vários em Paraty, como Matrix, Real Rec, GR Records, NMD Records e Casa 7, este no Condado. A ideia é abrir o Quadra II para utilização gratuita por pessoas da comunidade.
O nome se deve ao fato de que o estúdio fica a duas quadras de distância da casa de vários rimadores que o procuram. “A gente começa a se organizar, a respirar. Começamos a gravar músicas que falam sobre a realidade da favela. Os meninos estão falando daquilo que eles vivem”, diz Formiga.
Para participar, não pode fumar dento do estúdio, tem que respeitar as funcionárias e, sobretudo, não pode se envolver com o crime.
Três manos com apetite para o som
A reportagem conversou com três jovens que têm produzido suas músicas no estúdio Quadra II. Um deles é Arthur Aires Ferreira, 21 anos – por gostar de coisas antigas, em preto e branco, escolheu Xaplin como nome artístico. Seu primeiro single foi lançado em janeiro deste ano, Esquina da Praça.
Pai de dois filhos, trabalhando em restaurantes, encontrou músicos que tocam na noite e o ajudam a gravar o primeiro disco com banda. “Desde 2019, sou cem por cento ligado ao rap, em vários estilos. O bagulho não é dom, é esforço.”
Esforço também é o que está fazendo Gabriel Almeida do Nascimento Lopes, o GB 22, de 25 anos. O que ele quer? “Conseguir colocar nossa banca na mídia. Não quero só gravar. Fiz curso de cinema e fotografia, o que eu puder botar pra frente, vou botar, como clipe, produção. Minha intenção é fazer o nosso coletivo dar certo”.
Morador da Ilha das Cobras, GB 22 era DJ, mas se apaixonou pelas rimas. Tem seis músicas na internet, está produzindo outras, e avalia que o movimento evolui no caminho certo. “Se todo mundo meter ficha no objetivo, se unindo, sem muita rivalidade, nós vamos botar o rap daqui pra frente. Talento nóis têm”.
Talento e vontade, como o rapper Pedrink, ou Pedro Henrique da Silva Nascimento, de 17 anos. Ele costuma ser o primeiro a chegar e o último a sair do estúdio Quadra II. Criado pela avó, apesar de novo, coleciona duríssimas experiências de vida, mas levanta a cabeça e quer seguir no rap. Sua primeira música é Fuga de Opala, já lançada, e ele tem sete músicas gravadas para o próximo trabalho.
“Nunca mais quero encostar em armas, só no microfone. Todo preto, favelado, pode vencer.” E se você vencer, pergunto, o que vai fazer? “Cuidar das crianças da nossa favela”, responde Pedrink, sem vacilar.