Se não for suspenso, memorial negro começará em 2024 em SP
Contrato com escritório de arquitetura está assinado; movimentos sociais querem cancelar concurso que escolheu o projeto
Em um café do bairro da Liberdade, na capital paulista, encontro o jovem arquiteto Igor Carollo, de 26 anos. Apesar da curta trajetória profissional, ele está à frente de importantes projetos, especialmente dois: a reforma da Capela dos Aflitos e a construção do Memorial dos Aflitos, marcos da história negra em São Paulo, do lado oposto do quarteirão onde está o estabelecimento chiquezinho em que o entrevisto.
Se as duas obras, uma ao lado da outra, ocorrerem simultaneamente, como, até o momento, deve acontecer, não se sabe como será a relação de Igor Carollo, responsável pelos dois projetos, com os movimentos sociais, alocados na Capela dos Aflitos. Apesar de serem contra a construção do Memorial, que desconsideraria a representatividade negra e indígena, fiéis desejam a restauração da igrejinha construída em 1779.
Deixemos o arquiteto sentado à minha frente, esperando um café e um pão de queijo, e voltemos no tempo para entender o enredo da situação que jamais agradará a todos os envolvidos e talvez só se resolva daqui muitos anos, se for judicializada – é o que o arquiteto pode fazer, caso os movimentos sociais consigam cancelar o concurso para construção do Memorial dos Aflitos, pedido que está sendo analisado pelo Tribunal de Contas do Município de São Paulo.
Restauração da Capela dos Aflitos
O bairro da Liberdade, atualmente identificado com a cultura oriental, era a periferia de São Paulo entre os séculos 17 e 19. Ali vivia a população pobre composta por negros, indígenas e imigrantes. Havia cadeia, pelourinho, forca, cemitério e órgão da administração pública. Sobrou a Capela dos Aflitos, identificada com o culto ao herói negro Chaguinhas.
Literalmente caindo aos pedaços, no início deste ano o restauro da igrejinha foi aprovado pela prefeitura e pelos setores de patrimônio municipal e estadual. Movimentos sociais, como a Associação de Amigos da Capela dos Aflitos (Unamaca), e o Instituto Tebas, comemoraram a decisão.
Quase ao mesmo tempo, a Secretaria de Cultura da capital escolheu, por concurso, o projeto de construção do Memorial dos Aflitos, a ser construído ao lado da Capela dos Aflitos, em local onde funcionou o primeiro cemitério público de São Paulo.
Parecia ser mais um motivo para comemoração, afinal, um bem arquitetônico histórico seria restaurado e outro, construído no terreno vizinho, mas a encrenca começou logo após a aprovação do projeto arquitetônico do Memorial dos Aflitos.
Memorial dos Aflitos questionado
Apesar de movimentos sociais como a Unamca e o Instituto Tebas terem representantes no concurso que classificou três projetos arquitetônicos para o Memorial dos Aflitos, após o anúncio do vencedor, o Escritório Paulistano de Arquitetura, o caldo entornou.
A proposta passou a ser questionada desde a utilização da terra do local, até a falta de representatividade negra e indígena, sobretudo pelos movimentos sociais que a escolheram. O escritório vencedor desistiu do concurso.
E quem era o segundo colocado, que, então, assumiu a construção do Memorial dos Aflitos, conforme as regras do concurso? Carollo Arquitetura e Restauro, o mesmo responsável pela reforma da Capela dos Aflitos.
Uma pergunta pertinente
Por que os movimentos sociais aprovaram o projeto que viriam a questionar? “Ocorre o seguinte: desde o momento em que foi anunciado o vencedor, o movimento apontou sete problemas, ainda que tivéssemos dois representantes na comissão julgadora. O que significa isso? Significa que o coletivo é maior do que os indivíduos. O coletivo dá a palavra final”, justifica Abílio Ferreira, do Instituto Tebas.
Segundo o advogado Shigueo Kuwahara, contratado para apresentar denúncia ao Tribunal de Contas do Município de São Paulo, o concurso para o Memorial dos Aflitos não teria atendido aos princípios obrigatórios da publicidade e da concorrência, não adotou medidas para evitar o racismo e nem para incluir a representatividade indígena, entre outros questionamentos.
O processo está no setor de Assessoria Jurídica e Controle Externo desde o dia 19 de outubro. Dali, deve retornar com um parecer, “fundamental para os futuros desdobramentos”, diz o advogado. Quais seriam esses desdobramentos?
“Não temos indicações nem pela revogação e nem pela manutenção do concurso. Entendo que é um caso complexo, como são complexas as questões de racismo, que vão além dos atos de racismo individual.”
Por falar em racismo...
Voltemos ao café onde entrevisto o arquiteto Igor Carollo. Entre rápidos olhares para o celular – estamos conversando há mais de uma hora – novos cafés e pães de queijo, falamos de uma das autoras do projeto do Memorial dos Aflitos, uma mulher negra e favelada.
Digo que, considerando seu perfil, a alegada falta de representatividade negra não se sustentaria. Lembro ao arquiteto que estou tentando entrevistar sua parceira de trabalho há três meses. Muito cautelosa, a arquiteta Diana Cavalcante preferiu não se manifestar em minha primeira abordagem. Queria esperar uma reunião com representantes dos movimentos sociais.
Contudo, após a conversa com Igor Carollo, a arquiteta envia uma única resposta, longa, considerando a extensão de mensagens de texto via celular. O que ela escreve é um primor de respeito, consciência cidadã e significativa da complexidade desta história.
A resposta da arquiteta
Diana Cavalcante é uma mulher negra de 30 anos, nascida e criada na Cidade de Deus, no Rio de Janeiro, assim como seu pai, negro. Ela é filha de uma nordestina. “Ambos lutaram desde criança, como muitas pessoa nesse país, em sua maioria, negros periféricos, para sobreviver e conseguir melhores condições. Fui a primeira de minha família a me formar em uma universidade pública.”
Ela estudou na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Cotista, ingressou em 2012, ano em que a UFRJ implantou cotas para negros, pardos e indígenas.
“Acredito que se hoje eu estou aqui falando com você, como uma das autoras do Projeto do Memorial dos Aflitos, é porque, lá atrás, esses mesmos movimentos que reivindicam maior representatividade, não só de pessoas negras, mas também de indígenas, precisaram lutar pra que eu tivesse direito ao acesso à universidade, aos programas de permanência, e a esse espaço.”
Ela sabe que a luta dos negros para conquistar um lugar de destaque ou de liderança não é fácil no Brasil. “É dolorosa, cheia de altos e baixos. Talvez mais de baixos do que de altos e, estrategicamente, muitas das vezes, a gente precisa dar alguns passos atrás para que as novas gerações deem largos passos à frente.”
Obviamente, ela quer realizar o projeto do Memorial dos Aflitos, mas não é afoita. “Pensando na contribuição dessas lutas para que eu chegasse até aqui, não é justo me colocar numa perspectiva individualista contra uma luta e uma construção que são coletivas.”