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Tamires Sabotage segue luta do pai por condições básicas às favelas

Jovem de 28 anos atua no projeto “Todos Somos Um”, que leva comida e lazer aos moradores da Favela do Boqueirão, na zona sul paulista

1 jun 2023 - 05h00
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Na casa de Tamires se empilham cestas básicas usadas para fazer marmitas para os moradores do centro da cidade. A ação faz parte do projeto “Todos Somos Um”
Na casa de Tamires se empilham cestas básicas usadas para fazer marmitas para os moradores do centro da cidade. A ação faz parte do projeto “Todos Somos Um”
Foto: Daniel Arroyo/Ponte

Do lado direito da rua estavam três mulheres e um bebê, de três meses, sentados dentro de um salão de beleza. Ao ver que Tamires Rocha, 28 anos, passava pelo outro lado da via, a mulher com a criança saiu com pressa para encontrá-la. “Você não sabe o que eu passei nesses dias. Ele [o menino] ficou internado e quase morreu. Te mandei mensagem, mas imagino que tava fazendo teus ‘corre’”, disse a mulher, esbaforida.

Não deu nem tempo de Tamires formular uma frase completa, antes que fosse tomada pela história. Ela emprestou os ouvidos e seu tempo para fazer o que define como parte do trabalho como ativista social: se dedicar aos problemas dos outros, porque boa parte deles já sentiu na pele. 

A cena não é um caso isolado e se repete todas as vezes em que Tamires sai de casa e caminha pela Favela do Boqueirão, lugar em que vive desde a infância — período em que morou com a mãe Maria, o irmão Wanderson e o pai Mauro Mateus dos Santos, o lendário rapper Sabotage (1973-2003). O “Maestro do Canão” passou ali os quatro últimos anos de vida, antes de ser assassinado, em janeiro de 2003. 

“Uma frase que aprendi com meu pai foi: quando melhorar para mim, vai melhorar para vocês”, conta Tamires. O que provavelmente o rapper não imaginava ao dizer isso para a filha, ainda na infância, é que isso se tornaria o lema de vida da jovem.

Tamires Sabotage, 28 anos, na viela que homenageia o pai. Na foto, a imagem dela de costas e do irmão Wanderson, que também foram desenhados pelos artistas
Tamires Sabotage, 28 anos, na viela que homenageia o pai. Na foto, a imagem dela de costas e do irmão Wanderson, que também foram desenhados pelos artistas
Foto: Daniel Arroyo/Ponte

Tamires dedica horas do seu dia não só à escuta (que é presencial, mas também de áudios que chegam pelo WhatsApp ou Instagram), mas também à entrega de marmitas para pessoas em situação de rua no centro da cidade, à captação de recursos para o projeto “Todos Somos Um”, ao trabalho que presta à Câmara de Vereadores de São Paulo na assessoria de rua, às aulas do primeiro período de Direito e às reuniões de projetos paralelos que ajuda (como pode, faz questão frisar) a tocar.

“Eu acho que para você ser ativista social precisa se colocar no lugar das pessoas, né?", comenta Tamires, que diz nunca ter refletido sobre o real significado do que faz. 

“É aquele negócio que a gente fala que é empatia. Por que eu ajudo? Já passei por tudo isso. Por que eu ajudo quem tem fome? Eu passei fome. Por que eu ajudo quem tem frio? Eu já morei em barraco de madeira”, complementa.

A trajetória com o trabalho social começou na adolescência de Tamires, época em que o projeto “Todos Somos Um” era um embrião não batizado e sem registro oficial. A ação era tocada por moradores do Boqueirão de forma voluntária. Em datas festivas, o grupo promovia  festas regadas a cachorro-quente e refrigerante para as crianças da comunidade. A estudante lembra que seu primeiro contato foi em uma festividade junina. 

Foi com 15 anos que Tamires migrou de beneficiária a membro do projeto social. Perto de datas como Dia das Crianças e do Natal, ela passava na casa dos vizinhos com um caderninho anotando o que cada um poderia doar para os eventos do bairro.

Apenas em 2019, o “Todos Somos Um” ganhou nome e CNPJ, ação motivada pelo crescimento do projeto. Além dos vizinhos, os voluntários também buscavam doações de lojistas da comunidade.”O açougue me doava carne ou linguiça para fazer com pão”, explica Tamires. 

Além de Tamires, Diego Bola, um líder comunitário do Boqueirão e ex-assessor de Sabotage, também passou a assumir a liderança do “Todos Somos Um”, nome dado pelo próprio Bola e que significa que a união faz a força. 

Com a dupla à frente do projeto, o “Todos Somos Um” passou a promover mais ações, que tinham como foco principal as 1.200 crianças moradoras do Boqueirão. Tornaram-se especialistas em festas de Dia das Crianças e Natal grandes, que deixam o campinho de barro do bairro lotado. Além de comida, são montados brinquedos infláveis e voluntários fazem pinturas de desenhos nos rostos. 

Outra ação que já se tornou fixa são as cartas que as crianças escrevem pedindo presentes. “Tem carta que a criança pedindo para o Papai Noel miojo, que era o sonho dela comer um”, relata.

A expansão do projeto social ocorreu em um momento de duas tragédias, uma mundial e outra pessoal. O mundo conheceu a Covid-19, doença provocada pelo coronavírus e que matou mais de 700 mil pessoas no Brasil. Entre as vítimas, Diego Bola. “A vida no Boqueirão não foi mais a mesma”, comenta Tamires, que assumiu, ainda no luto, uma responsabilidade maior dentro da comunidade. 

Foi na pandemia também que a preocupação com a fome se tornou mais latente. A maioria dos moradores da comunidade trabalhava de forma presencial quando foi determinado o isolamento e muitos perderam o emprego.

Tamires passou a contar com parceiros de outros projetos sociais que doaram cestas básicas, repassadas aos vizinhos. Os donativos foram tantos que foi possível distribuir para comunidades próximas como Canão, Jardim São Savério, Heliópolis e Vila Prudente. 

Hoje, o “Todos Somos Um” tem uma agenda de eventos e projetos semanais e mensais. A sede do projeto está sendo reformada e deve ser usada para a realização de cursos profissionalizantes. A previsão é que o local seja finalizado até o fim de junho.

Todo o trabalho do “Todos Somos Um” é reportado aos financiadores por meio das redes sociais, que funcionam como um diário de prestação de contas. No Instagram, em quase todas as postagens, é Tamires que aparece explicando a ação realizada. 

O post mais recente é de abril, no período da Páscoa. “As crianças da Favela do Boqueirão agradecem pelos ovos de Páscoa", dizem, aos risos e em conjunto, duas das crianças atendidas pelo projeto. O cenário de fundo é a casa de Tamires, também usada como ponto de entrega de alimentos, roupas e tudo mais que for necessário para garantir a continuidade do projeto. 

Ela conta que o local serve como um QG para os moradores. Um dos casos mais recentes e simbólicos ocorreu há poucas semanas, quando uma casa pegou fogo no alto do Boqueirão. Sem saber o que fazer com as crianças que moravam ali, os vizinhos levaram a trupe para a casa de Tamires. 

“Quando cheguei aqui tinha um monte de criança vendo desenho na sala”, lembra, em tom de brincadeira. É como se de alguma forma, a mãe da Alice, 9 anos, fosse também uma figura materna para cada um dos moradores do Boqueirão. 

Foto:

Tamires, mãe da Alice e estudante de Direito 

A jovem multitarefa faz questão de dizer que na rotina corrida sempre há espaço para cuidar da filha e ter momentos dedicados à família. Tamires gosta de cozinhar, estuda para as provas e trabalhos do curso de Direito no Centro de Treinamento Acadêmico (CTA), na madrugada, e tem o hábito de buscar Alice na escola.

“São momentos únicos porque é uma das imagens que eu mais gosto de lembrar é de quando meu pai ia me buscar na escola. Ele tinha vida corrida dele, mas ele tentava, sabe?”, diz Tamires. 

Ela conta que o pai costumava esquentar o almoço para ela e o irmão Wanderson logo que os dois voltavam da escola. O cuidado era feito em meio a um turbilhão de informações sonoras já que Sabotage, conta Tamires, tinha o hábito de ligar todos os equipamentos eletrônicos ao mesmo tempo. 

Em uma televisão rodava o jornal, enquanto na outra um desenho. Os rádios também tocavam frequências diferentes, sintonizados em estações de notícias ou nas mais variadas músicas. “Sabotage era eclético”, diz Tamires. 

Na casa em que vive atualmente, o silêncio é interrompido por latidos tímidos de dois shih-tzu adotados há dois meses. Outro momento de barulho é quando o avô Joaquim, pai de Sabotage, brinca com os animais. O senhor de 80 anos não teve relação com o filho, o abandonando ainda na infância, conta a neta. 

Ele foi achado pelos familiares há cerca de quatro anos e levado por Tamires para morar na casa dela. “Meu pai tinha uma mágoa muito grande, mas queria sempre ajudar o pai dele”, justifica a jovem sobre a acolhida.

Tamires, filha de Sabotage

Tamires posa ao lado do grafite que homenageia o pai. Ela luta para manter o legado do rapper, morto em 2003
Tamires posa ao lado do grafite que homenageia o pai. Ela luta para manter o legado do rapper, morto em 2003
Foto: Daniel Arroyo/Ponte

Dedicada à família e ao trabalho social, Tamires tem ainda mais uma faceta. É ela quem toca com o irmão vários projetos que homenageiam o pai. A luta é para manter vivo o legado do homem por trás do álbum “Rap é Compromisso”. No ano em que o rapper completaria cinco décadas de vida, os filhos planejaram uma série de ações para falar do pai, incluindo a pintura de uma viela no Boqueirão com grafites em referência ao rapper. A Viela Cultural Sabotage foi inaugurada há cinco meses e há três um show foi feito como forma de cerimônia simbólica.

O projeto dos filhos almeja também o lançamento de um álbum de parcerias póstumas de Sabotage com cantores com quem ele nunca gravou. A curadoria considerou artistas que Tamires e Anderson acreditam que o rapper gostaria de se juntar. Estão entre os nomes Criolo, Filipe Ret, Djonga e N.I.N.A do Porte.

A canção com N.I.N.A foi a única faixa já lançada e deu novos vocais a “Respeito É Pra Quem Tem”. A música também ganhou um clipe oficial.

Tamires não deve participar musicalmente do disco, mas já tem uma discografia invejável. Gravou músicas em estilos como rap, gospel e, em “Lembranças”, ela se jogou em um pop melódico para saudar o pai. O single ganhou clipe disponível no Youtube.

“Na sala de casa, eu te observava. Em todos os gestos, no tom da sua fala. Contador de histórias, professor da rima? Sim! Sua caneta era alma, coração a batida”, diz um trecho da canção.

Ponte
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