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Tantos Dias de Detenção: canal debate o sistema carcerário

Vanderlei Fischer criou o canal, em 2017, para dialogar sobre a realidade da vida de egresso: “Bandido bom é o ressocializado"

8 jun 2022 - 05h00
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Foto: Daniel Arroyo/Ponte

Quem vê o homem magro, de cabelos lisos, olhos claros e temente a Deus fazendo frete com sua van para diferentes pontos da cidade de São Paulo não imagina que ele já passou pelo inferno. De 1996 até 2003, Vanderlei Fischer ficou preso no sistema prisional paulista, justamente na época de decisivas e importantes mudanças dentro das prisões do estado.

Hoje, aos 47 anos, ele tenta chamar a atenção da sociedade para a realidade de dentro das prisões e como a fé muda a vida de quem sai de trás das grades e tenta uma nova chance do lado de fora. Para isso, Fischer criou o Tantos Dias de Detenção, um canal no YouTube onde compartilha as histórias dos tempos em que esteve preso e convida outros egressos do sistema prisional para debater as políticas penais do país.

Vanderlei Fischer em transmissão ao vivo no Instagram
Vanderlei Fischer em transmissão ao vivo no Instagram
Foto: Daniel Arroyo/Ponte

Porém, Fischer tem intenções bem maiores. Quer publicar um que está escrevendo desde a época do cárcere e pretende transformar o trabalho que faz na plataforma de vídeos na internet em uma ONG (organização não-governamental). Mesmo tocando sozinho o projeto, o motorista já faz ações em prol das pessoas que deixam as prisões.

“Eu estou sozinho no Tantos Dias de Detenção, mas trabalho em rede junto com outras organizações como o Responsa, que é uma agência de emprego para egressos. Estamos sempre fazendo campanhas para ajudar famílias que não têm condições de levar mantimentos para quem está preso e outros tipos de demandas, que não são poucas, para alguém que deixa a prisão”, comenta Fischer.

A ideia para criar o seu projeto, criado em 2017 e que atualmente conta com 22 mil inscritos, veio quando ele ainda cumpria pena. Evangélico desde antes de ser preso, Fischer afirma que dentro da cadeia recebeu um sinal divino que acabou se tornando seu propósito de vida desde então.

“Eu estava há várias noites sem dormir. Sem nem conseguir pregar os olhos. Aí eu pedi ajuda a Deus e ele me mandou uma mensagem toda de uma vez como se tivesse fazendo um download na minha cabeça. E está tudo até hoje, mas cada coisa vai acontecer no tempo certo. Escrever o livro e fazer o canal é só o começo disso.”

Vanderlei Fischer
Vanderlei Fischer
Foto: Daniel Arroyo/Ponte

Drogas, roubo e diários

Ainda na adolescência, quando morava na cidade de Taboão da Serra, na Grande São Paulo, Fischer já fazia uso abusivo de drogas. Tanto que ele diz não se lembrar de como foi o roubo a uma residência que o fez ir para trás da grades devido aos efeitos da quantidade de entorpecentes que havia consumido. Aos 21 anos ele deu entrada no 34º DP (Vila Sônia) onde passou um ano preso.

“Sou da última geração que ainda chegou a cumprir pena dentro de delegacia. Eram os chamados cofrinhos. No 34º DP ninguém conseguia fugir e as condições eram horrorosas. Até que um dia fizemos uma rebelião e quebramos a cadeia e ela foi desativada. Os presos foram deslocados para presídios e eu fui parar no Carandiru”, relembra Fischer.

O período de detenção de Fischer coincide com a época em que os prisioneiros começaram a se organizar e fazer articulações em diferentes presídios do Estado com a criação do Primeiro Comando da Capital (PCC), facção que determinou novas regras e condutas dentro das prisões.

“Quando eu entrei [na prisão] ainda era comum ter o malandrão de uma cela ou de uma ala, que agia com repressão contra os outros presos. Muitas vezes, a chapa esquentava e esses caras sempre sofriam alguma emboscada. Com o PCC, isso acabou e o Estado também dividiu os presos de acordo com o crime cometido”, conta Fischer.

Para ele, ser um cara ativo dentro da cadeia o ajudou com o seu projeto. Seja de maneira informal na fabricação de cachaça artesanal dentro da cela (a chamada “maria louca”) para os companheiros ou participando de ações de ONGs e outras entidades dentro da prisão, ele sempre deu um jeito de não ficar ocioso no tempo em que esteve recluso.

“Fiz um curso do Sebrae lá dentro e também participei de uma iniciativa de literatura que houve no Carandiru, uma espécie de concurso onde os presos escreviam contando as suas histórias e as melhores foram lançadas em um livro. A minha foi uma delas e participei também do lançamento que houve lá mesmo”, conta orgulhoso, segurando um exemplar do livro Letras de Liberdade.

Desde então, Fischer pegou gosto pela escrita e passou a fazer diários colocando no papel como estavam sendo aqueles dias em que estava privado de liberdade. Esse material serviu como base para o início do canal do YouTube.

Foto: Daniel Arroyo/Ponte

Histórias de cadeia

Esqueça estúdio, cenário, ring lights ou qualquer outro tipo de penduricalho comum aos grandes influencers que vivem de produzir vídeos e outros conteúdos para as redes sociais. Numa sala pequena de uma estreita casa no Jardim Monte Azul, zona sul de São Paulo, Fischer pendura um banner com o nome do canal em um  parede atrás do sofá, estica o braço e aperta o botão vermelho na tela do velho celular.

E assim começa mais uma live do canal Tantos dos Dias de Detenção. Quem acompanha a transmissão pela internet, vê a imagem de Fischer embasada, por trás de uma espécie de névoa. Não se trata de um efeito ou filtro, mas de um problema com a câmera frontal do aparelho.

“Fui o primeiro a ter canal sobre a temática de pessoas presas no Brasil, isso lá em 2017. Hoje já tem outras pessoas fazendo, com canais maiores que o meu e uma estrutura melhor também. Eu gostaria muito também de ter mais recursos técnicos, mas infelizmente sou sozinho e não tenho a ajuda financeira de ninguém”, lamenta.

O público do Tantos Dias de Detenção, segundo o seu criador, é formado por familiares de detentos, estudantes de Direito, pessoas que têm curiosidade sobre o sistema penal e até quem está cumprindo pena dentro de presídios.

“Eu recebo vários tipos de comentários nos vídeos. Gente de várias partes do Brasil que mandam um salve, pedem abraço. É bom saber onde o nosso conteúdo está chegando.”

No início, o conteúdo do canal era simplesmente Vanderlei lendo os diários que escreveu na prisão. Hoje, além de ler outros textos de sua autoria, recebe pessoas que também cumpriram pena, familiares e ativistas da causa anti encarceramento. Porém, ele confessa que dá mais audiência são os vídeos onde conta, junto com alguns convidados, histórias dos tempos de reclusão.

“As pessoas gostam de saber curiosidades, o dia a dia, e não só as histórias tristes. Às vezes tem algumas passagens mais divertidas, emocionantes. Mas não tem jeito. Você tira pelo que a gente vê na TV todo o dia à tarde nesses programas policiais. As pessoas gostam de história de cadeia.”

Vanderlei Fischer
Vanderlei Fischer
Foto: Daniel Arroyo/Ponte

Canal para ressocialização

Longe de ser um passatempo ou algo voltado ao entretenimento, o Tantos Dias de Detenção quer ampliar o debate sobre a Lei de Execução Penal no Brasil, assim como o processo de ressocialização dos egressos do sistema prisional. Para ele, o melhor exemplo é o presídio de Curitibanos, em Santa Catarina. Lá, existe uma fábrica de estofados dentro da unidade prisional onde os detentos trabalham e recebem por isso.

“O salário é dividido entre o preso, a família e uma parte ainda fica depositada para que ele possa usar quando sair da prisão. Isso é muito importante. Além de voltar para a rua com uma profissão, o egresso ainda tem um dinheiro para se manter por um tempo. A maioria deixa cadeia só com o uniforme da penitenciária. Nem outra roupa ele tem”, explica.

A ação mais recente encabeçada por Fischer, por meio do Tantos Dias de Detenção, é um abaixo assinado online pedindo o fim dos maus tratos dentro das prisões e pedindo a garantia que a Lei de Execução Penal seja cumprida nos seus dois vieses. “A gente quer que o preso cumpra a sua pena, mas com dignidade e com seus direitos garantidos, não sendo torturado e humilhado como continuam sendo até hoje.”

“A gente vive numa sociedade onde os programas dizem que bandido bom é bandido morto e com ‘CPF cancelado’. Que nada! Bandido bom é o ressocializado, que sai da cadeia e encontra trabalho e uma vida digna”, vaticina Fischer.

Ponte
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