Ponto de uso de drogas vira local de acolhimento na Maré
Espaço Normal, projeto de redução de danos ao uso de drogas vinculado à organização Redes da Maré, na zona norte do RJ, ganhou nova sede
Carlos Roberto Nogueira era uma figura conhecida pelos moradores da Maré, principalmente pelos que estavam sempre em um lugar específico da comunidade, onde algumas pessoas se reuniam para usar drogas. Quando equipes da organização Redes da Maré apareceram na região para implementar políticas de redução de danos para os usuários, ele, que era conhecido pelo apelido de Normal, foi um dos principais articuladores para o trabalho ser feito.
Aos 32 anos, Carlos foi atingido por uma bala perdida após uma das diversas operações da polícia fluminense no complexo composto por 16 favelas na zona norte do Rio de Janeiro. Carlos morreu, mas seu nome ainda está vivo no projeto que ele ajudou a construir. Na terça-feira (31/8), foi inaugurada a nova sede do Espaço Normal, durante o 1º Encontro Nacional Sobre Políticas de Drogas, organizado pela Plataforma Brasileira Sobre Políticas de Drogas e a Iniciativa Negra.
O prédio fica às margens da Avenida Brasil e nele acontece uma revolução nas políticas de drogas do Rio de Janeiro. Ali, os próprios moradores decidiram que era preciso cuidar dos seus e, assim, foi criado o centro de atendimento para pessoas que fazem uso abusivo de substâncias psicoativas.
Após três anos de pesquisa e trabalho no local de maior incidência de consumo de drogas da região, foi construído, em 2018, o primeiro espaço de referência sobre drogas e saúde mental em um território de favela no Brasil, com o objetivo de funcionar como um local de convivência e articulação para estimular diálogos, acolhimento, promoção do autocuidado e acompanhamento sócio-jurídico.
“Trabalhar com pessoas que fazem uso abusivo de drogas dentro da favela é bem diferente de prestar esse serviço no centro. Esse tipo de território é marcado por receber a faceta mais cruel da guerra às drogas, por ser o alvo. Aqui tem famílias que são o tempo todo confrontadas com a parte mais violenta, seja pelas operações policiais ou por não existir nenhum tipo de ajuda para essas pessoas. Tudo isso faz com que tudo que é ligado às drogas seja vinculado ao sofrimento”, explica Luna Arouca, coordenadora do Espaço Normal.
O espaço faz parte da Redes da Maré, organização é fruto dos trabalhos de base feito pelas associações de moradores e igreja católica, que tomou corpo em meados dos anos 2000, com a criação de cursinhos pré-vestibular para os habitantes da comunidade e hoje se tornou uma organização que atua em várias frentes: arte, cultura, memórias e identidades; direito à saúde; direito à segurança pública e acesso à justiça; direitos urbanos e socioambientais; e educação.
A expectativa é que a nova sede do Espaço Normal atenda cerca de 120 pessoas diariamente, 33% a mais do que no prédio anterior. Os acolhidos recebem os serviços de uma equipe interdisciplinar, formada por assistentes sociais, articuladores territoriais, advogados e psicólogos. Esses profissionais também fazem a orientação de familiares e a interlocução constante com serviços públicos de saúde, assistência e segurança, além de moradores e comerciantes da Maré.
“A gente está chegando em mais um espaço da comunidade que antes era um espaço apenas para uso de substâncias. Agora ficaremos fixos e, daqui para frente, a intenção é discutir cada vez mais políticas de drogas para outras pessoas do território que não conheciam ainda esse nosso propósito de levar a redução de danos para todos os cantos da favela”, conta a coordenadora de convivência do Espaço Normal, Vanda Souza.
O trabalho feito pelos redutores de danos é reconhecido por boa parte da população que mora no Complexo da Maré, mesmo assim o tema do cuidado às pessoas que fazem uso abusivo de substâncias psicoativas é uma disputa de narrativa que é travada todos os dias dentro da comunidade, principalmente com as igrejas neopentecostais.
“Eles veem a abstinência como única opção porque as drogas seriam algo moralmente ruim e que traz problemas judiciais para quem usa. A gente está aqui para apontar outras alternativas e não para entrar em um confronto direto”, comenta Luna Arouca.