Saiba como Osasco se tornou a capital do cachorro-quente
Lanche foi declarado Patrimônio Cultural e Imaterial da cidade. Processo de popularização pela mídia começou há uma década
Osasco, na Região Metropolitana de São Paulo, é conhecida como a "capital do cachorro-quente" devido ao aumento da exposição midiática há cerca de uma década, alta concentração de carrinhos de cachorro-quente, concursos e recordes brasileiros realizados na cidade. Conheça os personagens que fizeram essa história.
Desemprego, festivais gastronômicos e a cobertura da imprensa explicam porque a cidade de Osasco, na Região Metropolitana de São Paulo, se tornou a “capital do cachorro-quente”, o lanche mais barato do Brasil.
O movimento de popularização midiática começou há cerca de uma década. Antes, o cachorro-quente não diferenciava Osasco. O jornalista e professor Marcos Nunes de Barros, osasquense, lembra do primeiro vendedor do lanche no centro da cidade, em 1967, na frente da Escola Estadual José Liberatti.
“Foi uma novidade muito grande. Era muito simples o cachorro-quente do seu Pires, mas com um tempero inesquecível. Era o único carrinho que a gente podia ver no centro de Osasco. Dois ou três anos depois, surgiu um segundo, na Vila Yara, pertinho da divisa com São Paulo”, lembra Barros.
Trocando passe de ônibus por cachorro-quente
Na década de 1980, o desemprego e a inflação do fim da Ditadura Militar fizeram muita gente desempregada começar a vender cachorro-quente. Cidade industrial, Osasco sofreu impactos diretos da instabilidade econômica. Carrinhos do lanche pipocaram, inclusive nos arredores da estação de trem.
“Às vezes, a gente ia andando de Quitaúna até a Vila Yara, pegava o passe de ônibus e trocava por cachorro-quente. Era uma sensação maravilhosa. Nossos olhos brilhavam. O lanche é barato? É, mas pra gente, ainda era difícil”, lembra a professora e pesquisadora Rosângela Paulino, osasquense.
“Nossa vibe era sair das baladas e comer o podrão nas madrugadas, na região da rua Maria Campos”, lembra sobre os anos 90. Na década seguinte, aumentou a quantidade de carrinhos de cachorro-quente em Osasco, mas a cidade ainda não era reconhecida pelo lanche.
Osasco um pouco antes de ser a capital do cachorro-quente
Nos anos 90, o cachorro-quente passou a ser opção de trabalho garantido e alimentação barata. Uma das vendedoras dessa época é Francisca Martins Correa, 73 anos. Ela começou com seu carrinho na rua Primitiva Vianco, no centro. É uma das mais antigas em atividade.
Criou sete filhos e comprou casa vendendo cachorro-quente em Osasco. “Sou uma sobrevivente. As pessoas da minha época se foram. Já vendi muito, agora está devagar, tem muito carrinho”. Ela conta que, nos anos 90, quando começou, chegou a vender 200 lanches por dia. Agora, vende 60.
O movimento natural de crescimento da venda e consumo de cachorro-quente ainda não tinha feito de Osasco uma referência. Mas, em 2012, o primeiro concurso do lanche, amplamente coberto pela imprensa, sobretudo pela televisão, começou a criar a fama da cidade. Passou-se a repetir cada vez mais “Osasco, capital do cachorro-quente”. E o apelido pegou.
O protagonista dessa virada midiática é o publicitário Marcos Mello, “com duas salsichas”, brinca sobre a letra “l” dobrada do sobrenome. Ele contra que um amigo lhe mostrou reportagem sobre concurso de pastel em São Paulo, e Mello se perguntou “por que não fazer isso com o cachorro-quente de Osasco?”. A cidade tinha cerca de 600 carrinhos de cachorro-quente.
2012, 2013 e 2014: Osasco vira capital do cachorro-quente no Brasil
Em 2012, o publicitário cria o primeiro concurso de cachorro-quente de Osasco, realizado na rua Maria Campos, com 182 concorrentes. “A cidade era conhecida como capital da viola, do trabalho. Havia um certo preconceito em transformar em capital do cachorro-quente, um lanche tão popular”, lembra.
A Globo cobriu o concurso “e aí a coisa andou numa proporção que eu quase perdi o controle”. Em 2013, o segundo concurso, realizado na praça Antônio Menck, reuniu cerca de 15 mil pessoas. Mais de nove mil cachorros-quentes foram vendidos em um dia.
Então a cidade se preparou para quebrar o recorde chileno de maior cachorro-quente do mundo, segundo o Guinness World Records. Osasco venceu Santiago com 340 lanches enfileirados. Ainda em 2014, a visita da então presidente Dilma Roussef a Osasco chama ainda mais a atenção para a associação entre o lanche e a cidade.
A presidente foi fotografada comendo cachorro-quente, e virou meme com a imagem alterada engolindo uma pomba. Outros políticos, como Lula e Alkmin, também passaram pela cidade e fizeram a inevitável pose comendo o lanche.
Um parque temático de cachorro-quente
Além de concursos e festivais gastronômicos, a cidade quase teve um Hot Dog Osasco Park, um parque temático de cachorro-quente. Previa roda gigante de hamburguer, tobogã para escorregar na maioneses e no ketchup e montanha russa imitando curvas de salsichas.
A inspiração foi o falido Playcenter, e o mesmo Marcos Mello, que criou os concursos de cachorro-quente, estava à frente do projeto. Um ofício chegou a ser enviado ao ministério do Turismo, em agosto de 2014, tentando apoio para a construção do Hot Dog Osasco Park, que não chegou a ser construído.
“Foi um legado que tenho muito orgulho e pretendo voltar a fazer em algum momento no futuro. Muito provável, no ano que vem”, promete Mello.
Cachorro-quente patrimônio cultural
Em 2023, o cachorro-quente foi declarado Patrimônio Cultural e Imaterial de Osasco. Neste ano, no aniversário da cidade, foi distribuído o maior cachorro-quente do Brasil, com 62 metros.
A prefeitura registra 359 carrinhos na cidade. A atividade é regulamentada. Na região central, a licença prioriza idosos e pessoas com deficiência. 80% são mulheres. Os quiosques são padronizados e existe rodízio de dia e local.
É possível comprar um cachorro-quente simples por R$ 6,00, se pesquisar muito – o valor é considerado desleal pelos concorrentes. Em geral, custa R$ 8,00. A preferência é pelo pão de leite (“pão de banha”) ao invés do francês (“pão de sal”).
Em muitas barracas, filhas e netas são a segunda geração de cachorro-quenteiras. Muitas trabalhadoras são funcionárias. As diferenças entre os carrinhos são mínimas. Em alguns, palavras e desenhos informam as marcas de salsicha usadas. E existe uma tendência a explicitar a religiosidade com frases do tipo “nunca foi sorte, sempre foi Jesus” e “empresa administrada por Jesus”.
Em um desses carrinhos está Valdemir Ferreira da Silva, 44 anos, assistente de expedição, morador de São Paulo. Ele come um lanche completo, com duas salsichas, acompanhado de refrigerante. “Olha como tudo é limpinho, bem-feito, bem mais gostoso do que onde eu moro”.
Silva está em Osasco para seções de fisioterapia. Quando vem à capital do cachorro-quente, inevitavelmente, come um lanche no calçadão. Ele vem muito à cidade?
“Desde sempre”, responde mastigando.