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Bocada Forte: Desde 1999 levando a quebrada para a internet

Site pioneiro na cobertura do hip hop brasileiro comemora 23 anos de funcionamento ininterrupto: “nosso compromisso é com a base”

19 mai 2022 - 05h00
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Montagem de reportagem do site sobre a “nova escola” do rap nacional em 2001
Montagem de reportagem do site sobre a “nova escola” do rap nacional em 2001
Foto: Reprodução

Em 1999 a Seleção Brasileira era apenas tetracampeã mundial (e as pessoas achavam a derrota para a França na final de 1998 um grande fiasco), o presidente do Brasil era Fernando Henrique Cardoso e dos EUA Bill Clinton, e um dos maiores problemas globais era um tal Bug do Milênio. No dia 13 de maio daquele ano, ainda na era da internet discada, estreava o mais longevo site dedicado à cultura hip hop no Brasil e na América Latina: o Bocada Forte.

A ideia inicial de Fábio Pereira e André Silva era criar um site para o seu grupo de rap, o Urbanos MCs, mas resolveram expandir o projeto para falar da cultura hip hop em geral. Logo arregimentaram o amigo Jaime Lopes, o Diko, hoje com 40 anos. “O André morava no Jardim Monte Azul, o mesmo bairro que eu moro. Venho de uma família de cultura sambista,hip hop para mim, eu já estava inserido nisso, entendia o que era uma cultura”, lembra Diko.

Um pouco depois foi a vez de Giovan Fraga de Souza, 45, o Gil. Ele conheceu o Bocada Forte pelo rádio, ouvindo a 105 FM, rádio pioneira em tocar rap na capital paulista e região metropolitana. “Minha irmã tinha um computador, mas eu entrava na internet e nada me interessava lá. Mas um dia eu estava ouvindo a 105 e o Cheetara, mano de Campinas, tinha um momento em que entrava na programação para dar dicas. Ele falou de dois sites: o Bring The Noise, do Chuck D, líder do Public Enemy, e o Bocada Forte”.

Gil não teve dúvidas, esperou a madrugada (na época a internet funcionava por telefone, e depois da meia-noite as ligações custavam muito menos) para procurar os dois sites. Entrou no site de Chuck D e mandou um e-mail para o rapper - “na época, com meu inglês de escola estadual, usei um CD-ROM chamado ‘Translator’”, conta - e na sequência encontrou o Bocada Forte (ou “BF” para os íntimos). “Eu achei muito louco, os caras estavam falando das músicas que eu ouvia, nem imaginaria isso. Tinha uma seção chamada ‘Ponto de Vista’ onde qualquer pessoa podia escrever sua mensagem. Eu achava que era como uma carta, que iriam ler e depois publicar. Eu gostava de escrever, já fazia zines, fiz um texto rápido e dei enter, quando vi, já estava no ar!”, lembra.

O então jovem passou alguns meses frequentando o chat do BF e publicando seus Pontos de Vista, até ser formalmente convidado para entrar no time. “O Fábio me perguntou se eu ia no show do Wu-Tang Clan no Anhembi, em abril de 2000. Encontrei ele lá e ele me falou: ‘você escreve no Ponto de Vista, tem umas ideias boas. Tá aqui o seu e-mail’ e me deu um papel com instruções de como configurar o e-mail do Bocada Forte”. Era o começo de uma parceria que atravessaria mais de duas décadas.

Hoje André está afastado do dia-a-dia do site mas participa das conversas e ajuda na edição de imagens, e Fábio se desligou permanentemente em 2015 (“sem treta, coisas da vida”, fazem questão de frisar Gil e Diko). Além da dupla Gil e Diko, a equipe fixa do BF ainda conta com o DJ Cortecertu, Preto Claudinho, Érica Bastos, Mayara Nascimento e Diego Noise D - todo mundo ralando por amor à causa, acima de tudo. “Eu vejo o Bocada Forte hoje como um estilo de vida para mim”, explica Diko.

Gil, Diko e Chuck D após show do Public Enemy em SP em 2003
Gil, Diko e Chuck D após show do Public Enemy em SP em 2003
Foto: Arquivo pessoal

Além do pioneirismo em noticiar o que acontecia no hip hop em todo o país (“nossa vocação é a base”, diz Gil), o Bocada Forte foi pioneiro em experimentar com diversos formatos e serviços, um expediente mais comum na era anterior às redes sociais. O chat, onde as pessoas podiam logar para bater papo com fãs da cultura de todo o Brasil, era um espaço à parte, frequentado por futuros grandes nomes do rap alternativo, como Kamau, Marechal e Paulo Nápoli - e até mesmo gente que já tinha carreira, como Rúbia, do grupo de “bate-cabeça” (estilo underground de rap) RPW. “Chegou uma hora que tinha até batalha de rimas no chat. E o pessoal levava a sério, começou a se preocupar com escanção, se a rima estava certa, como se fosse poesia”, lembra Diko.

Em 2001 o BF começou uma parceria com o provedor Star Media, e o chat ficou turbinado. “Hoje o pessoal faz podcast em vídeo, mas a gente já chamava grandes nomes do rap para conversas exclusivas no chat. Às vezes o pessoal achava estranho, porque a gente levava eles na sede do provedor, que ficava na região da Faria Lima, pensavam que a gente era playboy e que aquela era a nossa sede”, conta Gil, rindo. “Mas na verdade iam buscar os artistas de táxi e a gente tinha que voltar pra quebrada de busão mesmo.”

Além do chat, o BF disponibilizou por uma época um serviço de e-mail gratuito, o Webmanos, que teve que ser descontinuado porque os custos dos servidores ficaram estratosféricos. Outras seções que faziam sucesso incluíam a seção de letras de rap, que podiam ser enviadas pelos fãs, e um dicionário de gírias, que acabou registrando dialetos de todo o país, uma espécie de avô do Urban Dictionary. “A gente criou essa seção de gírias pelo próprio nome do site. Em São Paulo, ‘bocada’ significava uma quebrada sinistra, uma situação treta, mas em outros lugares o significado era diferente”, explica Gil.

Ao longo dos seus 23 anos de existência, o BF acumulou parcerias, como a revista online Manuscrito, realizada entre 2002 e 2003 com o portal UOL. “Ali a gente fazia ali matérias especiais, era uma outra pegada, o Gilberto Yoshinaga, o Gilponês, ajudava a gente na pauta, mas não era algo que concorria com o Bocada Forte”, diz Gil. Em outros momentos, ganharam financiamentos especiais, como em 2004, quando foram agraciados com um aporte do Prince Claus Fund, ONG ligada ao governo holandês, e em 2007, quando venceram um edital do governo estadual de São Paulo e conseguiram manter por um tempo um escritório na Galeria Metrópole, no centro da capital paulista.

Fora isso, sempre fizeram diferentes malabarismos para manter o portal no ar. “A gente tem pouco material de 1999 porque tínhamos que ficar trocando muito de servidor. Uma época eu trampei com pirataria (foi há muito tempo, acho que já posso falar) e meu chefe comprava um link de microondas, só tinha banco na minha área que usava o mesmo tipo de infraestrutura. Eu subia o site escondido do chefe, aí estava bem mais fácil, subir o site inteiro em horas - imagina, em 2004, fazer upload de um gigabyte em minutos!”, confessa Gil.

Em 2004 abriram sua loja online, que segue no ar até hoje e ajuda no grosso dos custos de manter o site em pé. “A gente fazia o que dava. O Fábio pegou uma grana para fazer boné e vendemos muito bem, esgotou rapidinho, fizemos camisetas também. Tanto o Fábio quanto o André bancavam muito da infraestrutura até 2002, 2003”, diz Gil. 

O reconhecimento do trabalho até que chegou rápido, e com apenas dois anos de idade o site recebeu das mãos do sambista Nelson Sargento em 2001 o Prêmio Hutúz, principal troféu do hip hop na época, de Melhor Mídia. “A gente estava concorrendo com rádio (a 105), com a MTV que tinha o Yo, mas ganhamos. Teve uma vantagem de que boa parte da votação foi na internet, e a gente era um site, não existia essa integração de mídias na época - temos até hoje os relatórios das votações, porque o Celso Athayde (criador do prêmio) nos chamou para auditar a votação online junto com os outros sites que concorreram, o Real Hip Hop e o Mundo da Rua”, explica Gil.

Os frutos também vieram em outras frentes. A lista de colunistas que passaram pelo BF inclui o carioca DJ Tamenpi (“foi a gente que juntou ele com a Chocolate”), hoje também produtor de shows em São Paulo, e a deputada federal Áurea Carolina (PSOL-MG), eleita em 2018: “imagina, a Áurea mandando pra gente texto sobre o Fórum Social Mundial no começo dos anos 2000, quem ia saber que ela seria uma das deputadas mais votadas do estado dela?”, se pergunta Gil.

Diko, Gil, DJ Cortecertu, André Silva e Preto Claudinho, na última reunião presencial do PF antes da pandemia, em 2020
Diko, Gil, DJ Cortecertu, André Silva e Preto Claudinho, na última reunião presencial do PF antes da pandemia, em 2020
Foto: Arquivo pessoal

Entre os orgulhos da equipe estão ter viabilizado o show de 2003 do Public Enemy em São Paulo. O grupo vinha para tocar no Tim Festival no Rio de Janeiro, mas fazia questão de se apresentar também na capital paulista. “O Chuck D me deu um salve, a gente trocava ideia por e-mail. Eu coloquei ele em contato com os produtores da Chocolate, que fizeram o show aqui, mas ele fez questão de que toda a comunicação fosse através de mim. No dia do show eu estava no backstage e ele veio falar comigo: ‘você é o Gil?’ Imagina a emoção, o Chuck D vindo trocar ideia ao vivo comigo!”

Outro trunfo foi ter apresentado a produtora Suemyra Shah em 2003 para Rodrigo Brandão, que ajudou a trazer artistas norte-americanos e formatar o festival Indie Hip Hop (hoje Batuque Festival), no Sesc, como é até hoje. A parceria rendeu frutos, incluindo a cobertura do show do grupo de rap underground Hyerogliphics, que Gil chama de “a melhor matéria que já fizemos”, que incluiu a disponibilização de clipes da banda no site (numa era pré-YouTube), mp3 de músicas do grupo, uma longa entrevista antes do show e outra depois que a banda voltou à Califórnia e um vídeo ao vivo para o qual chegaram a alugar câmeras.

Mas nem tudo é só felicidade, e trabalhar com jornalismo tem seu preço em momentos mais difíceis. “Eu lembro até hoje da morte do Sabotage, que a gente foi um dos primeiros a publicar sobre. O silêncio na Galeria do Rock. Mas talvez a notícia mais triste que eu já publiquei foi a da morte do DJ Primo, que era muito próximo da gente. Foi quando me afastei por um tempo do Bocada, mexeu muito”, lamente Gil, que ainda lista a perda de nomes como a produtora Tatiana Ivanovici, a rapper Dina Dee, o b. boy Banks, da crew Backspin, e o rapper Enézimo, morto em 2020 com Covid-19, como algumas das mais doloridas.

Outras seções do site trouxeram outros tipos de problemas, como o caso do Ponto de Vista, que acabou descontinuado. “Era uma época em que as pessoas ainda não entendiam o conceito de anonimato na internet. Aparecia alguém lá, publicava mentiras sobre os outros, e era muita coisa, às vezes aquilo ficava dias no ar, e vinham atrás da gente, achando que éramos nós que tínhamos inventado as histórias”, conta Gil. “Mas nunca deu problema real, a gente desenrolava na rua mesmo, nós é maloqueiro também né”, brinca Diko.

Mesmo 23 anos depois, o BF, uma espécie de Maximum Rock’n’Roll (zine clássico do punk californiano) do rap nacional, mantém sua filosofia e quer continuar no ar por muito mais tempo. “A gente não publica matéria paga, por exemplo. Nada contra quem faz, mas separamos as coisas. E temos um compromisso desde sempre de não publicar material machista, homofóbico, racista - smepre tivemos sorte de ter mulheres muito próximas da gente, que nos ensinaram muito. Tem gente que acha que a gente é tiozinho, ‘conservador’ por ter essas ideias, mas é justamente o contrário”, explana Gil. “Nosso compromisso sempre foi e segue sendo descriminalizar a cultura hip hop. Hoje é diferente, mas foi uma longa estrada”.

Para além do importante registro histórico de mais de duas décadas de hip hop no Brasil, o BF quer continuar relevante sempre com os olhos voltados ao underground, em dar espaço para quem está chegando. “Quem quiser colaborar é só mandar o material pra gente. Só não vai mandar press release copiado”, explica Gil. “E é importante avisar que estamos sempre abertos a parcerias de quem queira somar, marcas grandes, empresas pequenas, compartilhando da nossa filosofia é só chegar, não tem tabela de preço, a gente desenrola. Nosso compromisso é com a sustentabilidade: do site, da favela, do mundo”, finaliza Diko.

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