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Carta aberta a Mano Brown em seu aniversário de 54 anos

Com dois nomes bíblicos de batismo, Pedro Paulo, nascido no dia do “descobrimento” do Brasil, rapper é predestinado

23 abr 2024 - 13h36
(atualizado em 24/4/2024 às 13h01)
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Resumo
Trajetória do artista, de mais de meio século, alavancou uma revolução cultural nas periferias brasileiras: orgulho próprio, visão crítica, racismo, entre outros temas, são rimados, com a possibilidade da periferia cantar e dançar ao som da música que representa as dificuldades da maioria da população brasileira.
Mano Brown, um dos maiores artistas nacionais. Suas letras transformam as lutas do povo preto e pobre em poesia revolucionária
Mano Brown, um dos maiores artistas nacionais. Suas letras transformam as lutas do povo preto e pobre em poesia revolucionária
Foto: Instagram

Irmão – não sei se posso te chamar assim, com tal intimidade – queria muito te agradecer. Nenhum político, partido, religião, programa governamental, ong, ativista e outra pessoa que tenha tentado dar uma força à periferia fez o que você fez com suas palavras e sua ira, provavelmente o maior poeta do rap nacional. Muito obrigado.

Sabe como te defino? “Esse maluco deve ser uma reencarnação de Zumbi”. A primeira vez que ouvi sua voz e seus versos, com Um Homem na Estrada, naturalmente, fiquei acachapado. Passaram-se décadas, e a sensação ainda não passou.

Eu estava com um amigo, fechado em uma garagem, ele colocou o CD num aparelho de videogame, o som saindo pela televisão, e o poder da poesia criava todas as imagens que não havia na tela.

Eu acabava de entrar no curso de Jornalismo em uma universidade pública. Filho de empregada doméstica, pai pedreiro e carpinteiro, cinco irmãos, eu corria o risco de virar intelectual, mas você me salvou. Li milhares de livros meu mano, sou pós-doutor pela USP, mas você tiozão, você é meu maior professor.

Te encontrei duas vezes. A primeira foi em Bauru, Sobrevivendo no Inferno estava estourado. Deu a maior treta, o pessoal não pagou o cachê, quase não houve show. Antes da apresentação, te vi no hotel, rápida conversa.

Depois, testemunhei seu respeito às tiazinhas pobres e crianças sujas te esperando na entrada do evento. Maior responsa sua atitude; cumprimentou as pessoas como se fossem autoridades. Aí, o inacreditável: você cantando em cima de uma cadeira de rodas, perna engessada, acho que machucou jogando bola.

Foi um show tumultuado, atrasou, o pessoal queria quebrar o lugar, mas certamente poucas pessoas viram Mano Brown cantar em cadeira de rodas. Eu vi.

Anos depois, te encontrei em Curitiba. Presenciei o respeito de todos os Racionais, inclusive sua mãe, na chegada a um clube. A molecada esperava encostada na parede. Mãos para trás, posição de detentos, acanhados, mas vocês todos saíram da van e cumprimentaram um a um. Eu no meio, nem disse que era jornalista, nenhuma pauta seria mais importante que cumprimentá-lo.

Só pedi para, ao final do show daquela noite, entregar uma apostila que eu havia feito para um cursinho pré-vestibular popular para afrodescendentes. Você autorizou e eu fiquei até quase cinco horas da madrugada esperando a apresentação acabar para te dar a apostila.

E você a recebeu. Sentou e deu a maior atenção. Encanou com a primeira página mostrando diferentes rostos de etnias africanas, aquelas que o Jorge Ben canta em “Angola, Congo, Benguela...”.

Continuei te acompanhando, claro, eu e a legião que você mobilizou, educou, emocionou, alertou. Até choro irmão, na moral, até choro de pensar o quanto fomos adiante te ouvindo. O rap hoje é imenso, e mais: há um orgulho de ser favela, de ser preto, de ser do corre, de ser, inclusive, do crime, que nenhum IBGE será capaz de medir.

E você tem um casal de filhos lindos, brilhantes, sua esposa é uma liderança incontestável, acho que ela é capaz de te deixar miudinho. Espero que, além da felicidade que o dinheiro não paga, você esteja milionário irmão, milionário, porque você merece.

E, se me permite o comentário um pouco invasivo, acho que você entendeu o amor. Não vou me alongar, mas compreendi completamente essa sua abertura. Todo guerreiro precisa de amor, e ama, e sofre, e chora, né não?

Acho que li em algum lugar que você queria ser repórter. Tio, você é um dos maiores repórteres do país, acredite; reportou a quebrada como nenhum outro repórter jamais fez, faz ou fará. Talvez o escritor João Antônio, uma pena vocês não terem se cruzado neste plano material, converse sobre ele com o Ferréz.

De ontem pra hoje, andei vendo uns vídeos seus comemorando o aniversário na quebrada. Foto com esposa, filha, amigos. Acho que foi por causa desses vídeos que acordei emocionado nesta manhã. Tinha que ter escrito esse texto ontem, não consegui, nó na garganta, desculpe o feliz aniversário atrasado.

Apesar de tudo que acontece neste país, lembrei da minha infância e sei que temos uma periferia muito melhor. Falta muito, claro, lógico, faltam mil revoluções de um milhão de Manos Browns pras coisas entrarem nos eixos.

Mas você, tiozão, você, preto com dois nomes bíblicos, Pedro Paulo, você que nasceu no dia da invasão do Brasil (chamam de “descobrimento”) veio tipo assim como um profeta, anunciar a palavra. As palavras, nós amamos as palavras, jornalistas e poetas.

Mas vou terminando por aqui, com um salvão, porque, entre nós dois, quem sabe mesmo usar as palavras é você. Parabéns, meu truta, obrigado por fazer nos reconhecermos como irmãos de luta – a rima, fraquinha, entre “truta” e “luta” não foi intencional, é que escrevo mal mesmo. Desculpa aí.

Fonte: Visão do Corre
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