Como artistas se viram para manter o sonho de viver da arte
Depois da crise no setor da cultura provocada pela pandemia e falta de incentivos, a arte nas periferias retoma aos poucos suas atividades
Desde cedo os moradores de comunidades sentem que terão que se empenhar mais para entrarem no mercado de trabalho e isso acaba incentivando os mesmos a buscarem alternativas para fazer o capital circular na própria vila.
E os números confirmam isso: Com cerca de 1,21 milhão de pessoas desempregadas em Minas Gerais, de acordo com o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), muitos encontram na informalidade um meio de obterem renda para o sustento. Nas favelas e periferias do Estado, essa realidade é mais frequente e comum, por estarem afastados dos grandes centros e pelas diferenças sociais existentes no país.
O pensamento do produtor e gestor cultural Oderval Júnior, de 42 anos, seguiu essa linha. Ele fundou o projeto Noite de Cinema, com o intuito de promover a cultura cinematográfica na região metropolitana da capital. A iniciativa partiu dele, ao observar a carência de produções audiovisuais alternativas nas periferias do Estado.
O início foi em 2012, mas somente a partir de 2019 foi possível obter um retorno financeiro do empreendimento. "É um investimento incerto e duvidoso, mas com muita dedicação e trabalho, hoje chegamos a dez anos de trajetória", contou Oderval.
Mesmo ainda não sendo possível viver somente das ações coletivas, os planos do gestor cultural não param. Agora com o projeto mais recente, a criação do Cine Teatro Popular, em Ribeirão das Neves, ele pretende buscar parcerias e ser selecionado em editais de incentivo à cultura.
Ele sabe que sempre vai encontrar dificuldades no caminho, mas reforça que para quem trabalha com ações socioculturais não existe a opção de desistir: Não deixe que o sonho fique só na sua cabeça, faça o máximo para realizá-lo. A satisfação da realização de um sonho é inexplicável e única.
E quando a vontade existe, encontra-se um meio para concretizá-la. Johnny Kiff, de 30 anos, começou a compor com 15 anos. Visando o objetivo de estar próximo das câmeras, o músico cursou comunicação social na UFMG. Após trabalhar dois anos como jornalista em uma TV pública, percebeu que o desejo de empreender tanto no audiovisual quanto na música era maior. Hoje, concilia a música com as câmeras de forma independente e produz artistas e também a própria banda, chamada Revolução.
O produtor audiovisual faz questão de cantar as próprias composições quando se trata de gerar renda, mesmo sem o apoio das mídias tradicionais. Acrescenta que "o próprio contexto do domínio monopolizado das rádios pelos produtores sertanejos é um fator bastante injusto. Todavia a internet está aí para democratizar um pouco as coisas". Durante a pandemia, a música da banda, chamada Fake News alcançou um milhão de ouvintes no Instagram.
Assim como Oderval, Johnny passa por momentos desafiadores, mas a vontade de superar persiste. "Como músico independente me sinto como um artesão concorrendo contra grandes corporações industriais, e ao mesmo tempo em que isso é cruel, é também uma grande motivação", explica o músico.
Gostar do que faz deveria ser fundamental em qualquer profissão, mas nem sempre isso é possível. Rafael Ferrazzo, de 36 anos, consegue ter independência financeira como cantor e compositor sertanejo, mas antes de deixar o emprego fixo, foi preciso fazer um planejamento.
Ele conta que na cidade onde mora, na região metropolitana de Belo Horizonte, falta apoio à cultura, além da queda dos shows e eventos causados pela pandemia. O cantor já está há sete anos no mercado, mas alerta quem quer seguir pelo mesmo caminho: leve a música em paralelo com outro trabalho e estudo.
Buscar alternativas para encaixar as tarefas que dão prazer às que são necessárias, é uma forma de inserir a produção da arte gradualmente no emprego formal. O locutor Alexandre Brasil, de 38 anos, associou a profissão com algo que gosta.
"Vi alguns palhaços trabalhando na região de Venda Nova e tomei gosto pela coisa. Há 13 anos comecei a trabalhar de palhaço em festas de criança", relembra a trajetória. Hoje, Alexandre atua como DJ, locutor, palhaço, professor de dança e aluga equipamentos de som e iluminação para complementar o orçamento. Ele fala sobre as mesmas dificuldades que existem no início de qualquer profissão e se alegra em dizer que hoje conseguiu conquistar o público da região de Venda Nova e é querido pela maioria.
Antes de perceber a arte como um negócio, é preciso ter ciência de que o projeto ultrapassa o dom artístico. Exige estratégias para transformá-la em uma economia criativa. O escritor afrofuturista e desenvolvedor de sites, Helder Àlagba, de 31 anos, diz que fazer arte é sobre ser honesto com a própria alma.
"Se sua alma é preenchida de arte, não há outro caminho a seguir. É uma ilusão acreditar que eu seria feliz fazendo outra coisa, e acredite, eu tentei", declara o autor. Helder é um exemplo de quem começou a ter um incentivo comercial somente após muita divulgação própria nas redes sociais, porém, gradual. "O problema da bonificação oriunda das mídias como o Instagram é que elas alimentam apenas o ego, sem qualquer responsabilidade com as contas que nos cercam todo mês", explica. O autor se afasta da escrita nos momentos em que precisa usar outra habilidade para sobreviver.
Essa realidade é comum aos artistas das favelas. Edimar de Jesus, de 38 anos, conhecido como Mestre Navalha, iniciou as atividades culturais em 1992 e atua como mestre de capoeira há 17 anos. Mas para garantir o sustento, precisa trabalhar também na área da construção civil.
Navalha conta que pratica a capoeira não somente como um meio de trabalho, é também um modo de vida para "desviar das coisas ruins que a periferia oferece", explica. Ele destaca o fato da capoeira ser julgada como uma cultura malandreada, onde pensavam que ela seria também um meio de viver de modo malandreado.
Porém, o mestre se orgulha em dizer que foi essa arte que proporcionou a ele saúde, educação, motivação e formação profissional. "Como a capoeira tem origem negra, a musicalidade dela se funde com a história do país como forma de protesto pelo nosso passado de escravidão. É também uma valorização do presente e incentivo a um futuro com mais respeito", reflete.
Os obstáculos e as portas fechadas podem ser aproveitados como incentivo e servirem para fortalecer ainda mais a possibilidade da realização de um sonho. No caso do coreógrafo e maítre de ballet Nilson Silveira, de 58 anos, o objetivo era de ser ator, mas ficou decepcionado com o resultado de uma prova que fez no Palácio das Artes em Belo Horizonte.
A tristeza não o afastou dos palcos, pelo contrário, o coreógrafo continuou frequentando o espaço. Um dia ele assistiu a um ensaio de dança e ali despertou o desejo de estar naquele ambiente artístico e assim iniciou a carreira, há 38 anos.
Nilson sempre teve o respeito e o sucesso desejado e diz que o segredo disso é ouvir o coração: "Em todas as áreas, o mais importante é a sua satisfação e felicidade. Sendo assim, se você olhar dessa forma, o sucesso e a remuneração virão como consequência".