Disco de Carolina Maria de Jesus é regravado após 6 décadas
Obra original esquecida, lançada em 1961 após o sucesso do livro Quarto de Despejo, é recuperada por músicos periféricos
A liberação gratuita do álbum digital Bitita abre caminho para o trabalho musical da escritora Carolina Maria de Jesus. É a segunda regravação em estúdio do desconhecido e único disco da escritora, lançado em 1961, um ano depois do sucesso de Quarto de Despejo, livro que projetou mundialmente a moradora da favela do Canindé, em São Paulo.
Com o mesmo nome da obra literária de estreia, as doze músicas gravadas por Carolina Maria de Jesus, com letras da escritora, saíram em disco da RCA Victor, agora regravado pelo Selo Sesc. A percussionista Sthe Araújo, que dirigiu a mais recente versão musical de Quarto de Despejo, conheceu o livro, mas nem imaginava a existência do disco.
Quando ouviu, percebeu que os sambas, marchas, choros e outros ritmos da gravação original não faziam jus à força das letras. “Provavelmente, Carolina não conduziu os arranjos musicais. Eu sou percussionista e queria um trabalho com percussão e voz. Pensei na melodia a partir dos tambores. São heranças nossas, uma cultura ancestral”, explica Sthe Araújo.
Entre outras convidadas, ela chamou Nega Duda para alguns vocais de Bitita – apelido de infância de Carolina Maria de Jesus. Duda faz arrepiantes interpretações de Macumba, Quem assim me vê cantando e O pobre e o rico – nesta, qualquer distraído sente o peso da percussão aliada à crítica social das letras.
Outra participante da regravação, a percussionista, compositora e cantora Girlei Miranda, diz que “ter a percussão como protagonista é um trabalho muito delicado, tem que pensar nos timbres, nos tambores. Poucas pessoas conhecem a obra musical da Carolina Maria de Jesus. Essa releitura é um presente para a música brasileira.”
Estúdio periférico fez versão anterior
Sthe Araujo, que dirigiu a regravação do Selo Sesc, havia participado também da regravação anterior, em 2019, de sete músicas do disco Quarto de Despejo. Essas versões foram executadas pelo 1º Andar Stúdio & Produções. Um edital de fomento cultural financiou o trabalho.
“Ela retratava seus amores, desamores, desafetos, dificuldades, suas questões enquanto mulher negra, o cotidiano da favela do Canindé”, comenta Kleber da Silva, um dos fundadores do estúdio que fica na periferia de São Paulo.
Ele havia conhecido o disco há pouco tempo, no Sarau Quinta em Movimento, em Parelheiros. Tinha lido o livro, mas nem fazia ideia da obra musical de Carolina Maria de Jesus. “Então pensamos: é fundamental que as pessoas conheçam. A gente entende que tem um apagamento das produções das mulheres negras. Ela era uma multiartista na década de 60”.
Em pesquisas e conversas com Vera Eunice, filha de cantora e escritora, descobriu-se que o disco foi produzido para uma peça teatral. “Pelo que a gente sabe, não foi usado, então caiu no esquecimento. A gravação foi feita com músicos do estúdio. A gente não sabe se Carolina interferiu nos arranjos. Ela tocava um pouco de violão, mas na ficha técnica não consta ela tocando.”
Luana Bayô nas duas versões
Além da percussionista Shte Araujo, que tocou na regravação do 1º Andar Stúdio & Produções e dirigiu a releitura do Selo Sesc, outra artista teve a sorte de participar das duas versões do disco Quarto de Despejo, a cantora negra Luana Bayô.
Ela soube da literatura de Carolina Maria de Jesus no Sarau do Binho, no Campo Limpo, zona sul de São Paulo. Cria da área, morou e estudou na região, mas “nem na escola eu tinha ouvido falar” da escritora. Menos ainda do disco. Mas durante as gravações, “abriu um portal”.
“Eu vi como Carolina era gigantesca. Que não havia barreiras pra ela, apesar de tudo. Que além de livros, ela cantava. Todas as músicas do disco eram composições dela. Ela era uma multiartista. Para mim foi um portal, que me fez compreender: o que nos falta mesmo é oportunidade, se de fato tivéssemos acesso ao capital, nada nos pararia.”
A releitura procurou respeitar a sonoridade original, como a presença de sanfonas, dialogando com a música preta ancestral e atual, em batuques de candomblé e pitadas de sonoridade eletrônica.
Bloco afro fez Carnaval de Carolina
O bloco afro Ilú Obá de Min, fundado em 2004, reúne centenas de mulheres tocando tambores pelas ruas de São Paulo, nos desfiles de Carnaval. Em 2015, comemorando o centenário de nascimento de Carolina Maria de Jesus, completado no ano anterior, elas prepararam homenagem sobre a obra da multiartista nascida em Sacramento, interior de Minas Gerais.
Mergulharam na literatura e na música da autora de Quarto de Despejo e, nas ruas, cantaram algumas canções do disco lançado em 1961, como “Vedete da Favela”. Interessados acharão facilmente na internet registros do desfile emocionante, com o povo entoando o refrão do samba que fala, com ironia, de uma bela favelada que ficou vaidosa após ter seu retrato publicado no jornal. Maria Rosa “pensa que é a tal”.
Disco original é crítico, apesar do ritmo alegre
O disco original de Carolina Maria de Jesus é descontraído, tem ritmos dançantes, como sambas e marchinhas. Uma delícia de ouvir. Mas não se enganem: o olhar crítico caracteriza pelo menos dez das doze letras, abordando temas hoje conhecidos como violência contra a mulher e empoderamento feminino.
Em uma das músicas, a personagem coloca o marido pinguço para fora de casa. Em outra, acende o fogo para mandar comida quente ao companheiro, que está na lavoura. Homem firmeza, ao voltar para casa traz uma flor para a amada.
As diferenças entre pobre e rico não poderiam ficar de fora e merecem música específica. Há o malandro fugindo da polícia e os homens da lei acabando com uma festa. Trabalho de macumba e beleza periférica também são tematizados.
Quarto de Despejo, o disco, está disponível na internet, gratuitamente, assim como todas as regravações. De agora em diante, além do livro, devemos lembrar, usando uma expressão contemporânea, que Carolina Maria de Jesus escreve e “faz um som”.