Documentário dos Racionais na Netflix é um tapa na cara
Assinado por Juliana Vicente, filme apresenta uma narrativa poderosa de entrevistas e imagens raras que conta a trajetória do maior grupo de Rap do Brasil
Tem uma música dos Racionais MC's que se chama 12 de Outubro' Por conta da data, Mano Brown vai descrevendo - com um belíssimo som de violão ao fundo - um Dia das Crianças em São Paulo. Mano conta que em determinado momento encontra um grupo de meninos em uma favela na Zona Sul e começa a falar de futebol. Os meninos jogavam bola. Conversa vai, conversa vem, ele pergunta se os moleques tinham ganhado presentes. Um deles diz: 'ganhei foi tapa na cara'. O tapa tinha sido dado pela mãe, quando o menino perguntou porque ele não receberia nada naquele dia. Mano Brown, então, sentencia: talvez ele tenha se transformado naquele dia em outra pessoa. Melhor? Dificilmente.
Esta história não está contada no documentário Racionais MC's - Das Ruas de São Paulo pro Mundo. O filme retrata a icônica história do grupo formado por Mano Brown, KL Jay, Ice Blue e Edi Rock. É dirigido pela cineasta Juliana Vicente e mostra, por meio de imagens e entrevistas, muito, mas muito mais do que a história pobre do menino da zona sul de São Paulo no dia das crianças.
Em quase duas horas de pedradas visuais e sonoras é possível entender a importância de um grupo para uma periferia que antes dele não tinha voz e que depois do surgimento do grupo teve voz, mas ainda não tem vez em uma São Paulo fria e cruel como uma noite fria e chuvosa de inverno. O documentário estreou no último dia 16 de novembro na Netflix e precisa ser visto por todos os extratos da sociedade para entendermos - todos - mais sobre racismo, pobreza e desigualdade social. E, principalmente, como combatê-los.
Arrisco: assim como Sobrevivendo no Inferno, lançado de maneira independente em 1997, foi incluído no vestibular da Unicamp em 2020, o documentário de Vicente deveria ser exibido em escolas particulares espalhadas pelas áreas nobres da cidade. Afinal, é preciso conhecer o racismo, conhecer a desigualdade, conhecer a tristeza para mudar. Ou pelo menos para a coisa começar a mudar.
Mano Brown, Edi Rock, Ice Blue e KL Jay dificilmente concordariam quando começaram. No começo, como mostra o documentário, embora a conclusão seja minha, era só raiva, ódio da falta de comida, de água quente no chuveiro. Raiva de tudo? Possivelmente. Foi o tempo, a passagem do tempo, que fez com que eles entendessem que era preciso ocupar todos os espaços.
Todos os espaços
Talvez seja por isso que Mano Brown em outra música, de outro disco, celebra ter roubado mais um menino branco dos pais. O menino rico escuta Racionais e fala gíria. 'Gíria não, dialeto'. Me sinto um pouco (muito) como esse menino da letra. Escutar Racionais para meninos de classe média baixa de SP, como eu, era nada além do que um ato de rebeldia. Eu não passava fome, não sofria discriminação. Tinha chuveiro quente. Não era nossa realidade ali retratada, mas escutar 'Pânico na Zona Sul como passageiro de um carro que meu amigo dirigia com apenas 16 anos era o máximo de rebeldia a que nos dávamos o direito naquela longínqua década de 1990.
Com o tempo, passei a escutar seus discos como o retrato exato daquilo que nos falta como sociedade. Um retrato contundente, cortante, com letras e batidas que fazem você parar. E pensar. E pensar. E pensar. É exatamente esse, no fim das contas, o maior mérito do documentário assinado por Juliana na gigante multinacional norte-americana Netflix. Ele ocupa todos os espaços ao contar a história dos quatro da Zona Sul.
Que seja para sempre essa ocupação.