Espaço cultural se mantém há três décadas na zona leste de SP
Terreno que abriga o CDC Vento Leste foi palco de uma longa disputa política e hoje é mantido pelo grupo teatral Dolores Boca Aberta
Desde o fim da década de 1980, um verdadeiro cabo de guerra político, impulsionado pelas trocas de governo na prefeitura de São Paulo, marcou a utilização de um terreno perto da estação Patriarca, da linha 3-Vermelha do Metrô, na zona leste da capital.
No local funciona o CDC (Clube da Comunidade) Vento Leste, um espaço cultural, artístico e esportivo gerido de forma compartilhada por diversos coletivos da região. No início dos anos 2000, ele passou a ser a sede do grupo teatral Dolores Boca Aberta Mecatrônica de Artes, o que foi fundamental para a afirmação e revitalização de um equipamento público importante para o bairro.
Hoje, além do teatro, outras atividades como capoeira, futebol, basquete, danças para terceira idade e reuniões de grupos de apoio também acontecem gratuitamente no local, que coleciona boas histórias de resistência e união.
De volta ao início
Vento Leste é o nome de um coletivo que iniciou as atividades em 1978 e promovia ações artísticas e culturais em um porão na Cidade Patriarca, no distrito de Vila Matilde, onde permaneceu até 1984.
De acordo com os registros encontrados no CDC, um dos membros fundadores era filiado a ALN (Ação Libertadora Nacional), movimento revolucionário de resistência à ditadura militar criado pelo político e guerrilheiro Carlos Marighella (1911-1969).
Em uma ação estratégica e por muito tempo sigilosa, o grupo cessou fogo e então designou militantes para fomentar trabalho de base e formação ideológica nas periferias de São Paulo, a fim de desenvolver pólos de resistência – e, assim, o primeiro passo para a existência do Vento Leste foi dado.
Apesar do incentivo externo, moradores da região, como o engenheiro aposentado Miguel Perrela, 65, tiveram participação fundamental para a expansão das atividades artísticas e culturais que marcaram a história do coletivo.
“Lá não batia sol, mas a gente fazia brilhar. Tinha muita atividade na rua. Era um movimento muito ligado à questão popular”, conta Perrela, que atuou em cargos de liderança na gestão da ex-prefeita Luiza Erundina (na época do PT), além de ocupar o cargo de subprefeito da Penha durante o mandato do também ex-prefeito Fernando Haddad (PT).
Paulo Rafael, 68, historiador por formação, mas educador por paixão, relembra que o Vento Leste começou as atividades em um período em que as manifestações populares eram fortemente reprimidas pelo contexto ditatorial.
“Nascemos resistindo e, de certa maneira, seguimos assim 44 anos depois. A gente queria estimular um pensamento político também, até para nos proteger”, conta.
O educador relembra que as atividades reuniam pessoas de diversas partes da cidade e influenciou outros movimentos importantes, como a Lira Paulistana, que tem o diretor Riba de Castro como elo entre ambos os coletivos.
“Acredito que as trocas que fizemos com as pessoas, que vinham de várias partes da cidade, foram ótimas para todo mundo. Não tem nada melhor do que aprender com o outro, e também ensinar um pouquinho. A gente vai se construindo assim”, diz Paulo.
Chegada ao CDC
A zona leste sempre teve uma forte ligação com o futebol de várzea. O espaço que hoje abriga o CDC Vento Leste já foi o lar de algumas equipes do bairro. Com o tempo, o terreno do antigo CDM (Centro Desportivo Municipal) foi entrando em desuso e em situação de abandono, o que gerou insegurança aos moradores.
“Não tinha nada aqui, só a ruína de um vestiário. Era um barranco, não tinha nem árvore”, relembra Luciano Carvalho, 47, ator e um dos pioneiros do Dolores Boca Aberta.
Para contornar essa situação, no início da década de 1990, as coletividades do bairro passaram a promover algumas reformas e arborização, graças a um incentivo da gestão promovida por Erundina. Havia uma associação chamada Casa das Mulheres que também utilizava do espaço e contribuiu financeiramente para essas reformas.
Foi o primeiro passo para a mudança de cenário. Além do Clube da Comunidade, atualmente funcionam uma UBS (Unidade Básica de Saúde) e uma Escola Municipal de Ensino Fundamental no mesmo terreno.
Porém, a alegria de ter um espaço público destinado a manifestações culturais durou pouco tempo. Com o fim do mandato de Luiza Erundina e com as ascensões de Paulo Maluf ao cargo de prefeito, em 1993, e de Celso Pitta, em 1997, as coisas mudaram drasticamente.
Houve um candidato a vereador no bairro ligado a Maluf que promoveu perseguição política, forçando os grupos a desocuparem o local, o que acabou afastando o Vento Leste do CDC, e deixando outras organizações, mais inclinadas ao governo vigente, como administradoras do espaço.
“Mesmo assim nós nunca deixamos de olhar para aquele lugar, sempre acreditamos que poderia ser nosso novamente”, conta Miguel Perrela.
Retomada
No início dos anos 2000, Marta Suplicy (também do PT, na época) venceu a disputa eleitoral e passou a exercer a função de prefeita na capital paulista. Com isso, o Vento Leste, que já não tinha a mesma força de antes, entendeu ser o momento de afirmar o centro como um espaço de troca de ideias para as diferentes coletividades do bairro.
Paralelo a isso, o grupo Dolores Boca Aberta Mecatrônica de Artes dava aulas de teatro na escola ao lado e já flertava em “pular o muro” para aproveitar o espaço. Foi questão de tempo até as coisas acontecerem e se fortalecerem.
“A gente foi passando o bastão e acompanhando de outras formas”, diz Perrela, que hoje se dedica a outras atividades, como pintura.
Foi então quando a companhia teatral bateu na porta do CDC e passou a conquistar o espaço gradativamente. Existia a pretensão de fazer do espaço, além de uma sede, um lugar de pensamentos e expressões políticas, com o intuito de fortalecer e unificar movimentações populares, algo que aproximou os coletivos Dolores Boca Aberta e Vento Leste.
“Conseguimos acessar recursos públicos para a realização de projetos comunitários e de interesse público. De formação, festas, eventos, encontros, manutenção e arborização. São várias atividades que têm a ver com a dinâmica da vida de um bairro, e aí mergulhamos nisso”, avalia Luciano Carvalho.
Um dos maiores trunfos do Dolores é a longevidade, com pouco mais de duas décadas de atividades ininterruptas. Infelizmente, não é comum ver grupos teatrais com uma trajetória tão longa. De acordo com o coletivo, a razão para isso é a sede ser em um espaço público. A inviabilidade de pagar um aluguel acaba afetando diversos grupos deste meio artístico.
Porém, o Dolores Boca Aberta segue na luta para ampliar a rede de espaços comunitários semelhantes. O coletivo é integrante do Bloco das Ocupações, que tem como missão unificar todas as ocupações culturais em São Paulo.
“Juntamos as ocupações da cidade aqui, para entender quais são e quem são. Tentar organizar e conversar com o poder público para essas ocupações virarem sede, conquistem esse território”, conta Fernando Couto, 46, ator, jardineiro e técnico agrícola.
Para demarcar o território e fazer com que as pessoas que passavam em frente entendessem aquele espaço como um ambiente de manifestação artística, diversas obras bem chamativas, como um cata-vento, símbolo do CDC, foram expostas.
“Hoje o pessoal deduz que seja um espaço de cultura. Era um local ruim e virou um centro cultural. Ganhamos né? Mas demorou muito esse processo”, narra Carvalho.
SERVIÇO
Endereço: Rua Doutor Frederico Brotero, 60 - Cidade Patriarca, São Paulo - SP
Preço: Gratuito
Para conferir a programação e o horário das atividades e apresentações, acesse o Instagram.