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Filme da periferia do interior paulista disputa novo prêmio

Curta-metragem sobre égua que foge está concorrendo ao Grande Prêmio do Cinema Brasileiro como melhor curta de ficção

19 jul 2023 - 12h18
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Se, em agosto, o curta-metragem Ainda Restarão Robôs nas Ruas do Interior Profundo vencer o Grande Prêmio de Cinema Brasileiro, será a terceira premiação de um grupo de ousados periféricos de Assis, que filmaram tocante história típica das periferias do interior paulista.

O título do filme ironiza uma das principais diferenças sociais das regiões cuja economia gira fortemente em torno da produção rural: a presença de caminhonetes, pilotadas pelos chamados agroboys. Os veículos são os robôs do filme.

Nas ruas de cidades como Assis – a 450 quilômetros da capital paulista, com 100 mil habitantes – as caminhonetes se destacam e se impõem, quase como tanques de guerra, entre pessoas andando a pé, de bicicleta, moto, carroça e cavalos.

Por isso, o clímax do filme acontece no centro da cidade, com enorme caminhonete impedida de avançar pela égua estacada à sua frente. Apesar dessa cena central, a maior parte da trama se passa em um dos bairros da beirada de Assis, o Jardim Santa Clara, no limite entre o asfalto e o pasto.

Protagonista do curta-metragem, égua para o trânsito do centro da cidade de Assis, no interior de São Paulo
Protagonista do curta-metragem, égua para o trânsito do centro da cidade de Assis, no interior de São Paulo
Foto: Gabriel Samezima

Pioneiro da quebrada protagoniza o filme

As casas populares são recentes, tem mais ou menos uma década. Jonathan Gustavo Rodrigues Santos, 19 anos, intérprete do protagonista Luquinha, é um dos primeiros moradores do Santa Clara. Ele tira seu sustento da barbearia na garagem de casa, onde acontece o encontro para esta reportagem.

A arquitetura do bairro vem se modificando conforme as necessidades e soluções de sobrevivência. “Era praticamente só a minha casa quando eu cheguei, ninguém tinha muro, calçada”, lembra o protagonista.

As residências têm aquecedor solar no teto, marca de alguns conjuntos habitacionais. As ruas estão asfaltadas. Falta lazer tipo parque, quadra. Em uma tarde de sábado de julho, há pipas no ar, motinhas e carros passando. Cachorrada é mato.

Jonathan Gustavo Rodrigues Santos, 19 anos, interpreta o protagonista Luquinha, que perde a égua
Jonathan Gustavo Rodrigues Santos, 19 anos, interpreta o protagonista Luquinha, que perde a égua
Foto: Gabriel Samezima

Amor pela égua e o ego das caminhonetes

Uma das diferenças entre quebradas é que, nas metrópoles, a maior parte dos bairros periféricos, muitos deles verticais, estão grudados. “No interior, a periferia é horizontalizada, não tem prédio. Tem a quebrada e, ali, o pasto”, compara Daniel Rone, 34 anos.

Ele chegou ao Santa Clara depois do vizinho barbeiro, na casa do outro lado da rua. Rapper assisense, roteirista e ator do curta-metragem, ele conta que “um dia desses, a molecada achou a ossada de uma mulher aí no pasto. Era uma ossada de mulher, ela tinha sumido”.

Ele resume o argumento do curta-metragem dizendo que “se o moleque tem amor por uma égua, é destratado por uma caminhonete”. Para o protagonista do filme, “ir atrás da égua demonstra coletividade”.

Pilotando a Biz, Daniel Rone, roteirista-ator; o garupa é Bruno Ribeiro de Oliveira, outro personagem do filme
Pilotando a Biz, Daniel Rone, roteirista-ator; o garupa é Bruno Ribeiro de Oliveira, outro personagem do filme
Foto: Gabriel Samezima

Fortificando a desobediência, como no disco do Xis

Assis tem desenvolvido sua cena de cultura periférica. Há batalhas de rima na Concha Acústica e no campus da Unesp, festivais de cultura hip hop e o funk como forte elemento de identificação.

“Está rolando uma identificação, há várias batalhas de rimas. Não foram impulsionadas pelo poder público, caminham com as próprias pernas. Antes não chegava a informação, mas com a internet, chegou tudo. Antes tinha que ir pra São Paulo”, conta Rone.

Apesar desse diálogo com a cultura das quebradas surgida nas capitais, o curta-metragem exalta característica profunda das periferias interioranas: tanto quanto uma motinha, ou junto com ela, o favelado pode ter sua égua, que ama, mas ela foge, como a do Luquinha real e o do filme.

Jonathan Gustavo Rodrigues Santos, o protagonista Luquinha: periferia do interior está entre o asfalto e o pasto
Jonathan Gustavo Rodrigues Santos, o protagonista Luquinha: periferia do interior está entre o asfalto e o pasto
Foto: Marcos Zibordi

Essa cultura periférica, com suas inevitáveis marcas interioranas, hoje se coloca com orgulho diante da tradição caipira de botas, conservadora, cuja quintessência são as caminhonetes dos agroboys.

Os rolês do roteirista

Na barbearia, enquanto Jonathan, o protagonista do curta-metragem, fica de segunda dando um trato no cabelo e na barba do cliente, o roteirista-ator constata, na calçada, que “tem muita criança mano, muita criança”.

Os amigos o chamam de Niel, apelido dado pela mãe. Ele relata sua caminhada: nasceu em Assis; morou em Frutal do Campo, cidade ainda menor, nas redondezas; depois “o choque”, muda para São Paulo, capital, para morar em uma Cohab em Itaquera. Trabalha, ouve rap, curte a rádio 105 FM, “época dos CDs piratas”. Fica uns cinco anos.

Volta para Assis, abre loja de skate, quebra, trabalha no comércio, começa a vender bolos feitos pela esposa – é pai de duas crianças – e, “por ter contato com muita gente”, mesmo durante a pandemia, fica sabendo e realiza, online, um curso de roteiro.

Assisenses nas telas: à esquerda, três personagens do filme; à direita, diretor Guilherme Xavier Ribeiro.
Assisenses nas telas: à esquerda, três personagens do filme; à direita, diretor Guilherme Xavier Ribeiro.
Foto: Gabriel Samezima

Estabelece contato como diretor Guilherme Xavier Ribeiro, da Oeste Cooperativa Audiovisual. Para finalizar o curso, Niel tem que criar um roteiro. A história está na casa ao lado: o vizinho Luquinha comprara, não para trabalho, mas por amor, uma égua pela internet. Ela vive fugindo e ele ameaça vendê-la. O filme conta um dos resgates da ingrata.

Filme está estourando, tio

Patrocinado pela Lei Aldir Blanc, o curta-metragem foi produzido entre o final de 2021 e início de 2022. Em três dias filmando, para aguentar até de madrugada, “só no energético”, diz Jonathan. Ele lembra que Niel “saiu convidando a galera da quebrada para participar do filme. Desacreditaram dele”.

O roteirista-ator não desacreditou da possibilidade de realizar o curta-metragem, mas ainda desacredita do reconhecimento que o filme vem tendo. Os envolvidos não sabiam nada de cinema, nem que havia festivais. Niel tem na ponta da língua os prêmios de Ainda Restarão Robôs nas Ruas do Interior Profundo.

O filme ficou entre os escolhidos pelo público no Festival Internacional de Curtas de São Paulo, o Kinoforum, em que também recebeu o Prêmio Canal Brasil. Depois foi selecionado para a 9ª Mostra de Cinema de Gostoso, em Maceió, e para 24º Festival Kinoarte de Cinema, em Londrina.

Curta-metragem foi gravado em três dias, que entraram pela madrugada. Para aguentar, só com energético
Curta-metragem foi gravado em três dias, que entraram pela madrugada. Para aguentar, só com energético
Foto: Gabriel Samezima

Em seguida, salto maior, escolhido como representante brasileiro no 45º Festival Internacional de Clermont-Ferrand, na França, o maior do gênero. Agora, concorre ao Grande Prêmio do Cinema Brasileiro, na categoria melhor curta-metragem de ficção. O resultado sai em agosto.

O bonde para São Paulo chapou

A pré-estreia do filme em São Paulo, no ano passado, está marcada na memória. “Fizemos um bondão, lotamos uma van. O filme passou no Cine Sesc mano, tem noção?”, pergunta, respondendo, Niel. O protagonista completa: “Eu tinha ido uma vez pra São Paulo, mas algemado, nem vi a cidade, cheguei e me trancaram”.

Os manos que acompanham a conversa brincam, agora que é possível brincar com a lembrança: “Ele foi pra Febem, ele foi pra Febem”, repetem – trata-se da Fundação Casa, onde menores de idade são apreendidos.

Daniel Rone à frente e o protagonista Jonathan Gustavo Rodrigues Santos. Tirando onda em São Paulo, no Cine Sesc
Daniel Rone à frente e o protagonista Jonathan Gustavo Rodrigues Santos. Tirando onda em São Paulo, no Cine Sesc
Foto: Divulgação

O próximo bonde dos envolvidos no filme, com sete pessoas, é para o Rio de Janeiro, em agosto, participar do Grande Prêmio do Cinema Brasileiro. Nenhum deles conhece a capital fluminense e, desta vez, diferente do bate e volta feito para São Paulo, ficarão hospedados em um hotel.

Filmar faz a cabeça

Durante a conversa na barbearia, chegam os irmãos Bruno e Rafael Ribeiro de Oliveira, que representam personagens no curta-metragem. Rafael, o mais velho, de 18 anos, veste camiseta do Flamengo. Detalhes raspados na sobrancelha, bermudas largas, barra da cueca aparecendo, chinelão. O irmão, de 16 anos, também no estilo, tem o boné impecável e aparelho nos dentes.

Niel vai para casa, é aniversário do filho. Sobe na Biz, acelera e vaza. Eu, o protagonista e os dois irmão ficamos conversando na calçada. Copo com energético e pedrona de gelo passa de mão em mão. Manos da área continuam acompanhando a entrevista, chega outro. Novidades movimentam a quebrada, o tititi sobre o filme não para desde que as filmagens aconteceram.

Fazer o curta-metragem foi uma experiência bem louca. Entenderam a dificuldade de produzir cinema, o quanto dá trabalho; aprenderam que as falas precisam ser regravadas; que as imagens dizem mais do que as palavras; que o material precisa ser editado, e demora; que é necessário colocar trilha sonora, divulgar, correr atrás da exibição, inscrever em festivais.

Assisenses periféricos do Santa Clara, personagens principais de curta-metragem premiado
Assisenses periféricos do Santa Clara, personagens principais de curta-metragem premiado
Foto: Marcos Zibordi

“Mano, eu não tinha feito nem teatro na escola”, conta Rafael. O protagonista completa: “Nem sabia que existia cinema em Assis. Mano, sério, eu não assisto nem televisão. Depois do filme, eu fiz até um comercial”.

A experiência abriu a mente. E continua surpreendendo. O protagonista diz que “jamais esperava que isso acontecesse. A gente mora no fim do mundo”. Talvez morem, só que cada vez mais gente sabe que ali, nas beiradas de Assis, entre o asfalto e o pasto, vivem artistas de cinema.

Serviço

Ainda Restarão Robôs nas Ruas do Interior Profundo pode ser visto até o final de julho no site Porta Curtas.

ANF
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