Filme sobre Rubens Paiva não tinha que abordar ditadura na periferia
Polemica acusa Ainda Estou Aqui de mostrar o que ele efetivamente se propõe: a repressão militar sobre uma família de classe média
Longa do diretor Walter Salles concorre em duas categorias do Globo de Ouro: melhor filme em língua estrangeira e melhor atriz, com Fernanda Torres. Ainda Estou Aqui é injustamente acusado de omitir a repressão da ditadura militar na periferia.
Na moral? Não tem absolutamente nenhum sentido acusar o filme Ainda Estou Aqui de não mostrar a ditadura militar nas periferias. Ele não é sobre isso. Mas a pandemia opinativa, agravada pela polarização política, é uma permanente viagem errada pelo universo infinito das opiniões sem sentido.
A acusação direta e mesmo a sugestão malandra de que poderia ter mostrado a periferia vai na linha da polêmica fácil, rasa, bobinha, pretensamente inteligente. É como se o filme Carandiru tivesse que mostrar as dificuldades dos ricos no sistema carcerário.
Ainda Estou Aqui é sobre uma família de classe média alta, que mora em uma casa enorme, confortável, perto da praia, com cinco filhos bem cuidados, telefone, carro na garagem, empregada.
É sobre Rubens Paiva, engenheiro e político, morto pelo regime militar, e sua família, especialmente a esposa, leoa guerreira interpretada por Fernanda Torres. Aliás, é um filme sobre como a esposa e depois advogada Eunice Paiva resistiu ao desaparecimento do marido, e seguiu em frente.
É um filme feito por um diretor gato, talentoso, de família composta por banqueiro, embaixador e embaixatriz, criado entre ricos com nomes e sobrenomes enormes, cheios de letras dobradas e consoantes pouco encontradas em RG de pobre.
A acusação é injusta com a trajetória da família, a começar por Rubens Paiva. Seu filho, o escritor Marcelo Rubens Paiva, sabatinado no programa Roda Viva, da TV Cultura, foi questionado sobre o filme ser um olhar da elite branca.
Lembrou que o pai, com 32 anos, lutou por reformas em favor de negros, vulneráveis, pobres. Poderia ter citado que projetou e conseguiu recursos para a construção de um conjunto habitacional para moradores de baixa renda na Pavuna, periferia da zona norte do Rio de Janeiro.
Existe uma estação de metrô com seu nome na região. Em 2014, quando puseram um busto de Rubens Paiva no local, sua filha, Vera Paiva, contou que o pai “trazia a gente para ver a construção, mostrava como as casas eram boas e como o povo brasileiro merecia moradia decente”.
Eunice Paiva, esposa que lutou contra o regime militar corajosa e incansavelmente, foi uma importante militante da causa indígena. Se Fernanda Torres ganhar o Globo de Ouro interpretando a mulher de Rubens Paiva, reverberará no fundo da floresta.
As piores críticas são sobre aquilo que as obras não pretendiam ser. Comentadores reivindicantes deveriam arrumar coisa melhor para fazer. Talvez um filme sobre a ditadura militar nas periferias brasileiras.