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Gabriel Martins: das quebradas de Contagem para o Oscar

Diretor de Marte Um conta o processo de criação do filme e comemora a ascensão do cinema negro brasileiro

14 out 2022 - 12h18
(atualizado às 12h19)
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Gabriel Martins, diretor de Marte Um
Gabriel Martins, diretor de Marte Um
Foto: Divulgação

Um simples jogo de baralho entre uma família. Mas todos os conflitos dos quatro personagens entram nesta cena. A filha mais velha, universitária, quer morar longe da família. Já o filho mais novo não quer ser jogador de futebol e, sim, estudar astrofísica. Seu sonho é participar de uma missão em Marte. 

Marte Um, longa-metragem brasileiro dirigido pelo jovem cineasta mineiro Gabriel Martins, 34 anos, vai cruzando histórias de família, entre o afeto e a política. O filme é o representante brasileiro no Oscar 2023 e vai disputar uma vaga de Melhor Filme Estrangeiro. 

A indicação era algo impensado para o realizador. “Isso marca a possibilidade de um cinema independente brasileiro ter mais voz, mais possibilidade e dos filmes terem mais impacto socialmente”, explica o próprio Gabriel à Ponte.

Ao longo dos 115 minutos, Marte Um narra a trajetória de uma família classe média baixa de Contagem, região metropolitana de Belo Horizonte. O pai, Wellington (Carlos Francisco, ótimo) é porteiro de um prédio de alto padrão e cruzeirense fanático. Ele quer que seu filho mais novo, Deivinho (Cícero Lucas, uma grande revelação), torne-se ídolo do clube para o qual torce. A filha mais velha, Eunice (Camila Damião), quer sua independência e poder morar com sua companheira. Já a mãe, Tércia (Rejane Faria), é diarista e começa a ser atormentada por situações estranhas na sua vida cotidiana.

O longa-metragem aborda temas bastante atuais como racismo, machismo, luta de classes e a questão LGBT+. Mas tudo de maneira leve e até mesmo afetuosa. O diretor, nascido e criado na mesma periferia que retrata, procurou abordar assuntos sérios de maneira sutil e tênue.

“É importante existir um horizonte possível para as pessoas negras, para as famílias negras. Esses personagens carregam isso dentro da família protagonista. Eu não queria trazer um otimismo, mas sim uma fé, uma crença que é possível se colocar no mundo”, acredita Gabriel Martins, que também é o primeiro cineasta brasileiro negro a ter um longa-metragem indicado ao Oscar.

Antes de mais nada, como é ser diretor do filme brasileiro indicado para o Oscar 2023?

Gabriel Martins: Eu acho que são várias oportunidades que se abrem com isso. Trata-se do primeiro filme realizado em Minas Gerais indicado na história. Isso acaba abrindo possibilidades de um cinema sem tantos holofotes, sem tantas luzes, ser valorizado. É um filme que tem vários artistas locais e isso valoriza a nossa presença, as nossas ideias. É tudo ótimo o que anda acontecendo. O que mais me interessa é que Marte Um não seja uma exceção e que mais filmes independentes consigam isso.

Como surgiu o roteiro de Marte Um?

Gabriel Martins: Foram várias coisas. Acho que pude colocar questões mais pessoais, mais a minha perspectiva pessoal, porque esse é o primeiro longa-metragem que dirijo sozinho (No Coração do Mundo, de 2019 foi co-dirigido por Maurílio Martins). Adoro dirigir com outros diretores, como já fiz em curtas e longas-metragens. Mas nesse eu consegui depositar minhas ideias mais particulares, minha maneira de enxergar o mundo.

Quais foram suas principais dificuldades?

Gabriel Martins: Talvez a limitação de tempo. Marte Um é um filme de baixo orçamento, feito com R$ 1 milhão e 250 mil. Isso traz muitas limitações para filmar. Mas foi um trabalho feito com muita dignidade, muita força, sob várias intempéries. O tempo foi muito sacrificado já que a produção foi realizada numa época de chuvas e não tivemos muita sorte com isso. Já não sei se isso foi azar ou sorte, porque ao mesmo tempo fizemos um movimento de tensão de conseguir segurar a peteca num tempo tão curto. Tivemos essa liberdade dentro dessas limitações.

Como você chegou nos atores principais que fazem a família protagonista?

Gabriel Martins: São quatro atores muito fortes, talentosos, todos com talentos múltiplos. Eles se entregaram com muita dedicação, uma autenticidade grande. Parecem uma família de verdade e isso ficou na tela. Ficou na tela que são pessoas intensas, bonitas. São pessoas interessantes na vida real e os personagens acabam sendo engrandecidos pelas personalidades desses atores.

Seu longa anterior, No Coração do Mundo, já abordava Contagem e o universo da classe média baixa da região metropolitana de Belo Horizonte. Isso se amplia em Marte Um. Como fazer tantos trabalhos sobre esse mesmo universo?

Gabriel Martins: Olha, esse é um universo sem fim. É uma cidade em que cada pessoa tem uma tem uma história, uma trajetória. A sua pergunta não pode ser até quando e sim saber quantas histórias são possíveis a gente contar sobre Contagem. Eu tenho uma identificação plena com a região e as produções vão se amplificando, não acho que exista um esgotamento. No cinema americano ninguém fica contando quantos filmes foram feitos em Los Angeles ou Nova York. Da mesma forma, são lugares que têm pessoas. Acredito que na nossa cidade possa se fazer qualquer gênero de filme: ação, comédia, ficção científica...Temos liberdade para fazer em qualquer lugar. Não podemos ficar presos em um conceito.

Marte Um tem certos traços autobiográficos? Você conhecia esses personagens ou pessoas que o roteiro aborda?

Gabriel Martins: Eu acho que é mais um filme inspirado em certas situações da vida do que uma autobiografia. Eu sinto que tem elementos que também aconteceram na minha vida. O Deivinho é um garoto sonhador como eu. Vejo muito do diálogo dele com o pai como eu tinha com o meu. Meu pai também é um homem do seu tempo, da sua geração e que talvez tenha dificuldade em expressar seus sentimentos. É um filme sobre vida, mas representa vários momentos e não apenas um determinado.

Posso estar errado, mas parece que a grande força de Marte Um talvez seja falar de temas cotidianos. Talvez seja isso que aproxime do grande público? 

Gabriel Martins: Talvez sim. São conflitos universais que acontecem em vários contextos e cidades diferentes. Uma produção pode ser específica e encantar vários tipos de público. Um momento único que não é um evento isolado. Um filme nunca pode ser um evento isolado, temos que construir algo maior.

Logo no começo do filme percebemos as situações políticas de fundo como na eleição do Bolsonaro. Você procurava abordar isso de maneira mais ampla?

Gabriel Martins: Não. Porque em Marte Um eu pensava que a política era parte da cultura dos personagens, o mundo em que eles estão inseridos. O filme está representando um momento pós eleição, eu sempre quis filmar numa época em que estivesse acontecendo algo intenso, mas que isso fosse a contextualização da rotina dos personagens, uma espécie de comentário político dos espaços. A política faz parte da nossa cultura.

Estamos vivendo uma fase bastante política no cinema brasileiro, mas Marte Um me pareceu um trabalho mais afetuoso que político. Está certo isso?

Gabriel Martins: Um filme pode ser afetuoso e nem por isso é menos político. Cada artista tem suas escolhas formais para comunicar as suas coisas. Eu não preciso contar o tempo todo que não acredito no projeto Bolsonaro. Ao mesmo tempo, não gosto de subestimar a inteligência das pessoas ou criar ângulos de comunicação. Eu já fiz filmes em que a manifestação política estava mais presente, mas cada roteiro pede uma forma.

Marte Um me pareceu um drama familiar bastante otimista em grande parte da sua trama. Essa era a sua intenção?

Gabriel Martins: Eu acredito que o filme conversa com uma ideia de utopia. É importante existir um horizonte possível para as pessoas negras, para famílias negras. Esses personagens carregam isso dentro da família protagonista. Eu não queria trazer um otimismo, mas sim uma fé, uma crença que é possível se colocar no mundo. Coisas como o cinismo e o pessimismo não constroem mais nada do que o próprio ego. Acredito que esse tom de horizonte possível, de fé tem a ver com a minha personalidade, com a história do filme e comigo mesmo.

O longa-metragem tem alguns atores crianças como o protagonista que faz o Deivinho. Você teve alguma dificuldade em escolher essas crianças? Como você chegou nelas?

Gabriel Martins: O Cícero (Lucas, ator), que é o protagonista, tem 12 anos. Eu e minha companheira o conhecemos num samba e logo peguei o contato dele. De cara ele não saiu da minha cabeça. Depois, fomos numa escola de bairro e fizemos algumas leituras com garotos e garotas. Eu tive uma facilidade para achar pessoas interessantes, não tive problemas. Marte Um teve muita sorte de achar um protagonista como o Cícero. Porque como ele é um artista, toca samba. Com essa carreira musical, ele já tem todo um desprendimento e está acostumado a ser o centro das atrações. O Cícero é uma pessoa muito inteligente, sensível e especial. Mas não foi preciso grande esforço, apenas dar corda para ele acontecer. É fácil dirigir ele.

Você filmou Marte Um depois da pandemia?

Gabriel Martins: Não, eu filmei em 2018. Depois a montagem demorou um tempo e parecia que ia finalizar tudo em 2019. Mas aí veio a pandemia e ninguém sabia o que ia acontecer: se os festivais iam seguir, se as salas de cinema iam reabrir. Precisávamos entender como o mundo ia virar.

E como você ficou?

Gabriel Martins: O mesmo sentimento de vários artistas e cineastas não sabendo se iam ter trabalho, se o cinema ia se reestruturar. Foram vários fatores que nos acometeram, mas eu sabia que o filme iria ser lançado em breve. Isso foi me deixando mais interessado, mais forte. É preciso ter paciência, as coisas acontecem no seu momento certo.

Uma das coisas que mais me chamou atenção em Marte Um é que ele aborda vários temas complexos como luta de classes, questões LGBT e o racismo de maneira sutil e até mesmo leve. Isso foi intencional?

Gabriel Martins: Eu acredito que vem da maneira de como o roteiro foi construído, estruturado, já pensado numa atmosfera, num tom que senti interessante para essa história. Pode ser que hoje eu desse um tom diferente. Mas acho que tudo correspondeu a um desejo meu por fazer algo com simplicidade.

Uma coisa sútil e talvez nisso resida o sucesso que ele vem tendo de público?

Gabriel Martins: Não sei. Existem filmes que são bem mais incisivos nisso, nessa abordagem política como Bacurau ou mesmo Medida Provisória. Ambos foram sucessos de público. Mas acredito que não seja por serem filmes mais politizados ou mais engajados. Meu desejo é fazer filmes de vários jeitos, vários estilos. No Coração do Mundo tinha um potencial popular, mas não foi um grande sucesso de público. Não tem como antecipar como um filme será. Pode ser que meu próximo projeto seja mais denso, isso não é uma questão prévia. Na verdade, eu quero ser coerente com o projeto que aparece. É ilusório você considerar o que seja sucesso ou não. Queria uma contar uma história.

O personagem Wellington é bastante fanático por futebol e especialmente pelo Cruzeiro. Como foi tratar isso? Por que você escolheu o Cruzeiro e não o Atlético Mineiro que é um clube mais de massa?

Gabriel Martins: Isso não é verdade. O Cruzeiro é mais popular em termos de torcida, sou cruzeirense e é a torcida que tenho um afeto. Minha família inteira é cruzeirense. Mas eu acho que essa história do fanatismo faz parte do cotidiano do brasileiro, está no nosso país e na nossa cinematografia. Não sei se o futebol foi tratado de maneira interessante na ficção, mas parece que o cinema nunca se debruçou especialmente num time de fora do eixo Rio-São Paulo. E Marte Um trata disso. Da mesma maneira, o longa-metragem trata de questões culturais e o futebol é parte da nossa cultura popular. Essa paixão pelo futebol é forte, presente e acaba movendo esse personagem.

Outro aspecto interessante do mesmo personagem é que ele frequenta o Alcoólicos Anônimos. Como foi isso?

Gabriel Martins: Parte da minha família frequenta o Alcoólicos Anônimos e acho muitas coisas interessantes nesse grupo. Uma coisa que eles sempre falam nessa entidade é a ideia de ficar 24 horas sem beber álcool, a ideia do tempo. O filme trabalha com essa ideia do tempo da família: o trabalho, os momentos de lazer. Os Alcóolicos Anônimos também ajudam as pessoas a ter superação, paciência. Coloquei isso no filme a partir do momento que passei a participar desse contexto.

A duração do filme é de quase duas horas. Desde o início você planejava que ele fosse longo assim?

Gabriel Martins: Não. Não fazia ideia do tempo que teria. Fui deixando a montagem me guiar para ver que tempo teria e fui tentando entender o ritmo que conseguisse potencializar as histórias. Eu fiquei mais de um ano montando com muito esmero todas as quatro narrativas que acontecem em paralelo dos quatro personagens principais.

Parece que a participação de pessoas conhecidas como o ator  Tokinho e o jogador Sorín quebra um pouco o tom dramático do filme, deixando ele mais próximo do espectador. Sua intenção foi essa mesmo?

Gabriel Martins: Acho que vieram esses motivos que você mesmo falou. Marte Um está inserido num mundo como se fosse o nosso. Não fazia sentido eu colocar um jogador ficcional se quem conhece futebol sabe quem é o Sorín. Ele é um personagem que tem uma força, uma potência. Acho que tem uma coisa que move e acaba trazendo o filme mais para perto do espectador.

Como foi estrear o filme no Festival de Sundance?

Gabriel Martins: O festival foi online e teve de ser cancelado por causa da Covid-19. Mas eu pude acompanhar por fóruns e a verdade é que ter estreado em Sundance abriu muitas portas, foi crucial. A carreira internacional do filme tem sido muito forte: as reações são calorosas, sinceras, passionais.

O que representa para você, pro filme e para sua geração de realizadores mineiros ter sido indicado para o Oscar com Marte Um?

Gabriel Martins: Eu acho que essa identificação marca a possibilidade de um cinema independente brasileiro ter mais voz, mais possibilidade e dos filmes terem mais impacto socialmente. Consegue um olhar de pessoas que historicamente não tiveram acesso. É uma produção de produtora pequena e fora do eixo Rio-São Paulo. Então, espero que esses caminhos inspirem uma juventude em mais coisas.

É possível falar num “Novo Cinema Mineiro” ou mesmo numa “geração Contagem” por filmes como Marte Um, No Coração do Mundo e Temporada?

Gabriel Martins: Olha, eu acho que tem muita gente fazendo cinema em Contagem e Belo Horizonte. Falta apoio para chegar ao grande público esses longas-metragens, mas essa não é uma cena necessariamente nova. E sobre essa cena ainda não foi se dado a devida atenção. Se alguns poucos críticos conhecem fitas como Arábia ou No Coração do Mundo, Marte Um ter essa boa bilheteria pode possibilitar às pessoas conhecerem melhor esse cinema mineiro. 

Quantos espectadores teve Marte Um?

Gabriel Martins: Passou de 50 mil. Eu desejo que o filme possa se amplificar e alcançar mais pessoas por motivos óbvios. Mas acho que isso não depende exclusivamente de nós. O filme pode ir mais longe com essa trajetória de Oscar. Está há um mês em cartaz e deve sair das salas em breve, mas tem fôlego enquanto estiver sendo comentado pela imprensa e pelos espectadores. Chegamos a estar em 69 salas no Brasil. Mesmo assim, não conseguimos chegar em muitas cidades. Buscar mais pessoas é sempre um desafio.

Quais são seus próximos projetos?

Gabriel Martins: Não tenho muito a dizer, porque estou à procura de realizar um próximo filme. Eu gostaria de ter uma resposta mais direta com um próximo trabalho no gatilho, mas não estou.

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