Na pandemia, recenseadora do IBGE descobriu as divisões sociais da favela onde mora
Ela trabalhou no Censo de 2022 e nunca havia entrado de casa em casa na comunidade do Arará, em Benfica, no Rio de Janeiro
Preenchendo formulários detalhados, moradora percebeu as diferenças de quem mora perto do asfalto; comerciantes das ruas principais; trabalhadores que ganham pouco e moram no miolo da comunidade; e, nos limites da favela, barracos ao lado do valão de esgoto e vizinhos da linha férrea.
Imagine que você trabalha como recenseadora do IBGE justamente na favela do Parque Arará, onde mora. Seu supervisor solicita que comece a pesquisa do início da comunidade, próximo do asfalto.
Batendo de porta em porta, você percebe que os moradores da entrada da favela possuem um bom poder aquisitivo, em comparação aos demais. Quase todos são funcionários públicos municipais, estaduais e federais, da ativa ou aposentados, em diversos cargos.
A maioria possui carro, casas próximas às poucas áreas de lazer existentes, praticam atividade física, viajam e tem boa escolaridade, como nível superior e, às vezes, pós-graduação.
Comerciantes moram no asfalto
À medida que você vai avançando, existe outra realidade, dos moradores que possuem comércio. A maioria, nordestinos, donos de pequenos, médios e grandes estabelecimentos, como lojas e restaurantes.
Possuem pouca escolaridade e são raros os que têm segundo grau completo. Mas seus filhos, netos e bisnetos estudam em escolas particulares e universidades públicas e privadas. Nem todos moram mais na favela, mas geram empregos, fazendo a roda da economia girar.
Nessa parte intermediária da favela moram também os donos de quitinetes (casas apertadas, com pouca ventilação ou quase nenhuma). São os exploradores dos moradores que sobrevivem de salário-mínimo.
Mais para dentro, ainda nas ruas principais, é onde a grande massa de trabalhadores reside. São garçons, caixas de supermercado, padeiros, pedreiros, motoristas de ônibus, de Uber, empregadas domésticas, porteiros, auxiliares de serviços gerais.
O valão no fundo dos barracos
Aprofundando-me ainda mais nos becos e vielas, cheguei a locais com pouca incidência de luz do sol e pouquíssima ventilação. O ar está sempre carregado, com cheiro de gás metano, devido à proximidade do valão de esgoto.
Imaginar esse local com saneamento básico é quase utópico: a descarga é dada no banheiro (quando tem banheiro) e cai direto no valão, que passa nos fundos da residência. Os moradores precisaram se adaptar para sobreviver em meio a ratos, baratas, lacraias e todos os tipos de insetos e doenças.
Em uma dessas visitas, uma cena chamou minha atenção: uma senhora de 72 anos, aparentando saúde frágil, em sua casa que dava para os fundos para o valão, abriu a porta da residência com três cômodos minúsculos.
A casa tem um cheiro forte de mofo e cheiro de gás metano. Durante a entrevista, ouço um barulho de panela caindo no chão: uma ratazana estava passeando sobre as duas panelas em cima do fogão. “Ela só está com fome”, disse. A ratazana havia se transformado em um animal doméstico.
Os que moram mais ao fundo
A jornada termina na linha férrea, que tem como destino a zona portuária, localizada no bairro do Caju. Os moradores são, em sua maioria, explorados pelos “grileiros de lajes”, ou seja, moram de aluguel. Ganham um salário-mínimo e precisam fazer bicos.
A população infantil é muito grande: de cada dez pessoas, três são adultos e adolescentes, sete são menores de seis anos, a maior parte matriculada nas escolas e creches públicas, com suas mães recebendo o Bolsa Família.
Do asfalto ao valão, pensei na árvore chamada favela, que deu nome às comunidades. Assim como não existem plantas exatamente iguais, mesmo da mesma espécie, as favelas e seus moradores são diferentes – alguns conseguiram um lugar melhor ao sol.