Periferias criticam concessão de Casas de Cultura a organizações
Projeto prevê desvincular a gestão e a programação por 5 anos; movimentos culturais apontam falta de diálogo por parte da prefeitura de SP
Artistas, servidores públicos e movimentos culturais das periferias da capital paulista têm criticado o projeto da prefeitura de São Paulo que pretende desvincular da gestão municipal parte da administração das Casas de Cultura da cidade.
A ideia da Secretaria Municipal de Cultura é passar a manutenção e o gerenciamento dos espaços para OSCs (Organizações da Sociedade Civil), que ficariam responsáveis por contratar funcionários e dirigir a programação de atividades nos locais ao longo de cinco anos, no que a pasta nomeou de “gestão compartilhada”.
O edital de chamamento público que prevê a mudança foi colocado para consulta pública em dezembro de 2022 e sugere um investimento total de mais de R$ 169 milhões, que será dividido entre as instituições que assumirem os locais durante o período.
O valor investido representa um aumento de gastos anuais da prefeitura com os espaços. Em 2022, a gestão Ricardo Nunes (MDB) desembolsou R$ 16 milhões com a manutenção, operação e programação das Casas de Cultura. Com o valor citado no edital, a média das despesas anuais mais que dobraria, passando para R$ 33 milhões.
Os dados são públicos e foram obtidos pela Agência Mural na página de prestação de contas da prefeitura. Para o cálculo, foram avaliados apenas os valores liquidados, ou seja, aqueles que foram orçados e gastos entre janeiro e dezembro de 2022.
Diretor estadual de cultura da Unegro (União de Negras e Negros pela Igualdade), Bruno Jornadi, 38, é um dos nomes contra o projeto. “A cultura não é um comércio para uma empresa lucrar”, afirma.
Para ele, o edital permite que organizações que não conhecem os territórios periféricos administrem as Casas de Cultura. O ativista defende que os espaços sejam geridos por agentes culturais da própria região. “Não por uma empresa que vai cair de paraquedas, não conhece o entorno, a necessidade da população, dos artistas e dos agentes culturais”, diz.
Bruno acredita que o novo formato de gestão dificultará o diálogo dos moradores com a coordenação das Casas. “A população vai ser mero espectador do processo que vai rolar administrativamente”.
Para o artista Aloysio Letra, 42, a mudança significa, na prática, a privatização dos espaços, já que uma instituição privada responderia pela administração do local que é público. Morador de Guaianases, zona leste, ele critica a falta de diálogo da secretária Aline Torres, responsável pela pasta da Cultura na cidade, com a população e os movimentos culturais das quebradas.
“A gente sabe o que quer e não é esse modelo, não é um modelo de privatização, sem escuta, que é o que ela vem fazendo”, afirma Aloysio.
O artista participou de uma audiência pública convocada pela prefeitura para debater o tema no Centro Cultural São Paulo no último dia 13 de janeiro. Na ocasião, mais de 300 pessoas lotaram a Sala Jardel Filho levando cartazes contra o projeto.
Apesar de ter sido convocada pela própria prefeitura, a audiência não contou com a participação de Aline Torres, o que frustrou o público. Com a ausência da secretária, artistas e líderes culturais tomaram o palco da sala em protesto e se revezaram na posse do microfone expondo críticas à ideia.
A gestão do prefeito Ricardo Nunes, representada no encontro pelo secretário adjunto de cultura Bruno Modesto e por servidores da pasta, não conseguiu conduzir a audiência.
Desde que o projeto foi anunciado em dezembro, ativistas da cultura na cidade têm se manifestado contra a entrada das organizações na administração das Casas e cobrado que, ao invés disso, o governo municipal dê mais atenção para os espaços.
Uma das principais demandas do grupo é a abertura de concursos públicos para a contratação de mais funcionários que possam atuar na programação de atividades.
Atualmente, cada Casa de Cultura conta com um coordenador, escolhido pela gestão municipal, além de alguns jovens monitores, que auxiliam na manutenção das redes sociais e na programação de atividades.
Como o coordenador nem sempre mora no território ou é ligado à área da cultura, é comum, segundo os movimentos culturais, que os jovens monitores concentrem entre si boa parte do trabalho.
Aloysio afirma que vários monitores relatam sobrecarga de trabalho. “O que acontece é que eles acabam fazendo tudo: abrindo a Casa de Cultura, fazendo trabalho de técnica porque não tem técnicos, fazendo coisas que o próprio gestor deveria fazer”, comenta o artista.
Ex-jovem monitora da Casa de Cultura Vila Guilherme, zona norte, Neyson Cezar, 28, diz que também faltam funcionários para lidar com a demanda de trabalho. Ela atuou no espaço entre 2020 e 2022.
“Me choquei quando cheguei lá e me deparei com um único funcionário”, conta. “No ano passado tivemos 50 oficinas culturais contratadas. Imagina um coordenador para lidar com tudo isso? Não existem setores, existe um coordenador e oito jovens monitores culturais”.
Para ela, o projeto de gestão compartilhada da prefeitura representa a “privatização da responsabilidade” sobre os pontos que precisam ser melhorados nos espaços. Os ativistas cobram ainda mais transparência por parte da prefeitura.
Questionada, a Secretaria de Cultura afirmou que desconhece as alegações envolvendo sobrecarga de trabalho e que “não tem conhecimento de nenhuma denúncia protocolada, mas se solidariza com os jovens e os incentiva a procurar oficialmente a pasta, para que as reclamações sejam apuradas e as devidas medidas sejam tomadas”.
Nova audiência
Acompanhando a pauta desde 2022, a vereadora Elaine Mineiro (PSOL) diz que vai convocar uma audiência pública na Câmara de Vereadores para falar sobre o projeto de gestão compartilhada assim que o recesso parlamentar for encerrado.
Em abril do ano passado, a parlamentar, que faz parte do mandato coletivo Quilombo Periférico, chegou a convocar uma audiência sobre o assunto, mas a secretária de cultura não compareceu. Na época, a prefeitura fazia um estudo sobre o modelo de gestão compartilhada.
“A ideia é que a gente faça uma audiência pública mais uma vez chamando a secretária Aline Torres, que não participou de absolutamente nenhuma audiência pública da subcomissão de cultura da Câmara, e também chamando o prefeito Ricardo Nunes”, afirma Elaine.
A vereadora diz que o projeto é, na verdade, uma terceirização dos espaços, o que a gestão de Nunes negou que fosse acontecer.
Para ela, o edital precisa ser conhecido em detalhes, já que as Casas de Cultura cumprem um papel relevante nos territórios periféricos, permitindo o acesso à cultura pela população que vive distante do centro da cidade.
A reportagem da Agência Mural solicitou entrevista com a secretária Aline Torres para falar sobre o projeto, mas não foi atendida. Em nota, a Secretaria Municipal de Cultura afirmou que o edital está aberto para comentários e sugestões até o dia 31 de janeiro.
“Após o encerramento da consulta pública, a participação da população será levada em consideração e, caso a pasta julgue necessário, mudanças no edital podem ser feitas”, explica.
A gestão afirma ainda que o novo modelo permitirá aumentar a oferta de programação e o quadro de funcionários das Casas de Cultura, aumentando o público frequentador em 97%. Segundo a pasta, a média atual de frequentadores, 14 mil pessoas, é “muito baixa em comparação com o investimento feito”.
A secretaria afirma que o acesso a todas as atividades permanecerá “universal e gratuito” e que o uso de espaços por artistas e núcleos artísticos locais seguirá sem nenhuma contrapartida. Há exceção para casos como o de filmagens, que devem ser comunicadas à supervisão das Casas de Cultura.