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Pisadinha rompe barreiras regionais e agita favelas do RJ

Ritmo nordestino explodiu no território nacional graças às plataformas de streaming e redes sociais

5 mai 2022 - 05h00
(atualizado às 11h04)
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Barões da Pisadinha cantou no Carnaval de SP
Barões da Pisadinha cantou no Carnaval de SP
Foto: Reprodução/Terra

Há três anos liderando o ranking das músicas mais ouvidas no país, o estilo Pisadinha agora se consagra no Rio de Janeiro. A cultura nordestina do forró está presente na cidade carioca desde meados do século passado. O local tem testemunhado as suas várias mutações, do baião de Luis Gozaga, passando por Mastruz com Leite, Aviões do Forró, o resgate da tradição "pé-de-serra" nos anos 1990, o forronejo e, hoje, a pisadinha.

O gênero tem origem em 2004, no interior da Bahia, e é caracterizado pela "desanfonização", a proeminência de teclados, voz e batida eletrônica. Filho legítimo do "forró eletrônico", de lá pra cá, sua sonoridade absorveu tanto o tecno-brega do Pará, o arrocha, o sertanejo, quanto o funk carioca e até o hip hop.

O estilo, a pisadinha, o piseiro

O nome Pisadinha surgiu em 2004, na cidade do Monte Santo, interior da Bahia, e foi proferido pelo compositor Nelson Nascimento ao lançar o CD caseiro "O Rei da Pisadinha Volume 1". O material foi gravado no computador da casa de um amigo e distribuído gratuitamente.

O percurso de Nascimento é semelhante ao de muitos artistas do gênero, inclusive de alguns que alçaram a fama e estão no topo das paradas nacionais. Vinham da estética do teclado ("Morango do Nordeste", 1999, de Lairton dos Teclados) e tentavam inovar de alguma forma, experimentando os ritmos oferecidos pelo próprio instrumento, aí surgiu a Pisadinha. Um ritmo eletrônico transposto do xote, acentuado pelos contratempos do teclado, aproximando-o de um raggaeton acelerado. Uma música empolgante para dançar.

Em 2006, Nelson Nascimento finalmente faz a gravação do CD em São Paulo. Gusttavo Lima, em 2009, lança o disco "Revelação", no qual inclui a faixa "Fazer Beber". A composição estava presente em "O Rei da Pisadinha Volume 1". A música tomou o gosto do artilheiro Neymar Jr., que a convite do cantor, subiu no palco para cantar "Fazer Beber" num show gravado ao vivo, em 2013. Foi a partir daí que o nome e o estilo pisadinha foram impulsionados nacionalmente. Esse batizado simboliza a união de dois estilos que são demarcadores estéticos do piseiro: sertanejo e pisadinha.

A aproximação entre o sertanejo e o forró é antiga, vai desde o final dos anos 1990, quando surgiam as versões em forró dos hits sertanejos, até os anos 2000, quando começou a surgir na Bahia as primeiras bandas que compunham músicas no "forronejo", com influência ainda do arrocha baiano. Por outro lado, neste período, o sertanejo também se "popzava" com Jorge e Matheus, Cesar Menotti e Fabiano, entre outros, e em batidas concebidas do forró e influências múltiplas, como o funk, em Michel Teló e Gusttavo Lima. 

Devido à diluição de fronteiras e a fusão de nichos distintos, musicalmente é imperceptível a distinção, em algumas canções, entre forró sertanejo, forronejo e pisadinha. Além da levada rápida e a proeminência da dança no resultado sonoro, o rótulo pisadinha se deve ao seu aspecto fundamental: o regionalismo, o Nordeste.

O termo "piseiro" foi o rótulo dado pela indústria cultural para fazer homenagem e referência à real cena da pisadinha nas cidades do interior do Nordeste. Nesses locais, o complexo da pisadinha é performatizado por grandes caixas de som, o paredão, que executa as músicas em festas, praças e ruas de chão batido (ou não) onde as pessoas dançam. O piseiro é o chão onde se dança sob os passos da coreografia.

A desigualmente regional e dinâmica produção musical no Brasil

Praticamente todos, semelhantemente aos cantores sertanejos, tiveram a carreira musical inciada ainda na adolescência (quiçá infância): são filhos de cantores, tocaram em feiras, igrejas, festas ou casamentos nas suas cidades natais. Nomes como Nelson Nascimento (Monte Santo, BA), Biu do Piseiro (Campina Grande, PB), Barões da Pisadinha (Heliópolis, BA), Zé Vaqueiro (Ouricuri, PE) a Pedrinho Pisadinha (Porteiras, CE), entre outros, vieram do interior do Nordeste. E é o interior que eles vêm resgatar e cantar nas suas músicas.

Esses artistas gravaram seus primeiros CDs caseiramente e têm nos uploads de vídeos para o Youtube o primeiro passo. A plataforma, assim como o TikTok e o Instagram, são as principais ferramentas para promover artistas. O número de visualizações em vídeos do Youtube ou Tiktok são o principal norte para capitalizar talentos novos pelas produtoras e gravadoras. A estes canais também lhes interessa, afinal, monetizam as publicações de acordo com o número de visualizações, aumentando a possibilidade de oferta publicitária. O próximo passo é dado pelas empresas produtoras e distribuidoras ao manterem a oferta em playlists nas plataformas de streaming, como o Spotify e a Deezer.

Cabe lembrar que na era digital há um queda histórica da receita da venda de música gravada mundialmente, proveniente da venda física de CDs. Segundo dados de relatórios da IFPI, Federação Internacional das Indústrias Fonográficas, enquanto em 2000 as vendas de CDs físicos representavam 100% da receita, em 2022, representam apenas 19,2%. Em 2004, iniciam os serviços de download oferecidos pela iTunes, Amazon, entre outras, que chegaram a representar 29,9% da receita, caíram com o surgimento das plataformas de streaming e hoje representam menos de 0,25%.

Em 2021, 65% da receita da indústria fonográfica mundial veio das plataformas de streaming, ou US$ 14,9 bilhões em 2021 (fonte: IFPI). Estas plataformas pagam aos artistas, ou aos gerenciadores da sua carreira, por "play", ou seja, cada vez que uma música é ouvida, e este valor varia entre US$ 0,000358 (Spotify) a US$ 0,01123 (Amazon Music), segundo o site Traklist.com.br. Cabe lembrar que, segundo a empresa Alpha Data, uma pesquisa de março de 2021 revelou que 1% dos artistas, os mais ouvidos no mundo, representam 90% das audições totais.

O economista Chris Anderson em sua "Teoria da Cauda Longa" ajuda explicar a ascenção de pequenos nichos, como a regional pisadinha, graças à infinitute de ofertas de músicas das plataformas online. A internet diponibiliza repertórios fora da cadeia dos grandes sucessos que jamais alçariam vôo se não fossem os recursos dos algorítimos utlizados pelos streaming que avaliam os gostos dos seus consumidores e oferecem produtos similares. Graças a esse recurso, a então desconhecida "Fazer Beber", de Nelson Nascimento, torna-se avaliável ao consumir Gustavo Lima. Maior a chance de a pisadinha subir na escala dos hits quando Neymar posta um vídeo no Instagram dançando a música. O mesmo vale quando uma música se utliza da mescla de estilos. Ao incorporar o funk e o sertanejo, a pisadinha se torna disponível nas sugestões e publicidades geradas para consumidores do funk e sertanejo. A mescla de estilos aproxima nichos distantes e os retroalimentam economicamente.

Os nascidos na era digital ainda contam com uma rede de influenciadores digitais locais. Não é só Neymar Jr. e Felipe Neto que ajudam na carreira musical de um artista. Junior Vidal é um exemplo de jovem influencer de Paracuru (PB) que acumula um pouco mais de 130 mil visualizações no Youtube. Para ele, "forró das antigas" é a banda Mastruz Com Leite.

Zé Vaqueiro começou com 50 unidades de um CD caseiro distribuído gratuitamente entre feirantes, festas e cidades vizinhas, mas foi um vídeo publicado em seu Instagram que o levou ao primeiro sucesso, com "Vem Me Amar" (atualmente com 23 milhões de visualizações no Youtube). De escritório em escritório, em 2020 foi o primeiro agenciado pela produtora recém criada de Xand Avião (ex-Aviões do Forró), a Vybbe.

O sucesso do BlockBuster regional se deve a outras estratégias de empreendedores antenados ao promissor mercado do streaming. Em 2010, o empresário Éder Rocha sensibilizou-se com o potencial da música nordestina e criou a primeira plataforma de streaming regional, a Sua Música. Ao contrário do Spotify, que tem toda sua receita proveniente de assinaturas, Sua Música capta de forma mista: de uma lado com a veiculação de anúncios (ad-suported streaming) e, de outro, pela assinatura "premium" por seus usuários.

Além disso, a empresa recorre a outras prestações de serviços, como distribuição às plataformas (Spotify, Deezer e Youtube), coleta dos royalties e faz também o marketing digital nessas ferramentas. Outro serviço é o gerencialmento total do artista, da produção e distribuição, à venda de shows e marketing. Foi a Sua Música que descobriu primeiramente e promoveu o hoje famoso pisadeiro João Fernandes, no Youtube, Deezer, Spotify, etc.

João Gomes, natural de Serrita (PE), se destaca porque, apesar de agregado ao grupo dos pisadeiros, leva o que ele próprio chama de "som" ou "levada do vaqueiro". O trabalhador rural usava as redes sociais para divulgar seu trabalho. Sua música leva um mix de forró eletrônico, com sutil influência sertaneja, porém como uma evolução melódica do forró tradicional do baião e do xote, incluindo arranjos com sanfona. O timbre de voz grave de João Gomes, um jovem de 19 anos, lembra muito Luis Gonzaga. Um futuro promissor se apresenta e ele já tem sucesso: sua música "Meu Pedaço de Pecado" tem mais de 80 milhões de visualizações no Youtube, e, segundo o Spotify, foi a quarta música mais ouvida de 2021, e o seu álbum "Eu Tenho a Senha" o mais vendido daquele ano.

A plataforma Sua Música pendula na cadeia produtiva da música, é independente das grandes gravadoras e produtoras multinacionais, porém num patamar acima das dezenas ou centenas de pequenos escritórios locais espalhados de Goiânia (GO) a Fortaleza (CE). Torna-se um exemplo de como a cadeia de produtoras independentes, no elo competitivo do mercado fonográfico, acaba atuando como mediação para a estandardização da música mainstream, do pop comercial, ao direcionar sua curadoria artística para a promoção do top list e top hit nacionais.

Do translado da pisadinha de paredão das cidades interioranas do sertão até a atração das gravadoras, a mutação do formato em proximidade com o sertanejo revela a força gravitacional do mercado, coincidindo com a já identificação destes artistas com o sertanejo. De acordo com o Spotify, as cinco playlists mais ouvidas em 2021 são: Top Brasil, Esquema Sertanejo, Funk Hits, Paredão Explode e Potência Sertaneja. A atração e fusão da pisadinha com o funk e o sertanejo é uma força ascendente.

Paulo Pires é o pisadeiro que está estourando com o hit "Ameaça", composta junto com MC Danny e Marcynho Sensação. O vídeo já tem 175 milhões de visualizações no Youtube e seu perfil tem 4,2 milhões de ouvintes mensais no Spotify. Goiano, representa o movimento do sertanejo para o piseiro. "A gente começou a gravar um som que não era piseiro, era mais voltado para o sertanejo. Porém, como o piserio estava em ascenção, e eu sempre gostei dessa pegada mais pra cima, né, a gente tentou jogar um papo sertanejo dentro do piseiro, com um pouco do eletrônico". Embora tenha compositores clássicos do sertanejo no seu background musical, disse que "o forró sempre esteve nas nossas vidas desde moleque, forró com sertanejo são irmãos de placenta".

Já em 2019, Os Barões da Pisadinha assinaram contrato com a Sony Music, Raí Saia Rodada e Mano Walter com a Som Livre. Pelo peso do escritório de marketing dessas companhias, dá para entender a explosão de views e vendas do estilo em 2020. A tensão, contudo, é permanente. Em 2021, Tarcísio do Acordeon e Vitor Fernandes recusaram contrato com a Sony Music e a Universal Records porque já tinham assinado contrato de seis anos com Sua Música e preferiram manter fidelidade à empresa regional.

De acordo com o Spotify, Os Barões da Pisadinha foram os 6º mais ouvidos em 2020 e, em 2021, apenas um ano depois, tornaram-se os músicos mais ouvidos. E a pisadinha se mantém no ranking hoje em dia. A música "Parada Louca", de Marcynho Sensação com a principal expoente feminina da pisadinha, Mari Fernandes, esteve há meses nas paradas do Youtube Brasil e como a 10ª posição no Top 200 do Spotify. Segundo o Ecad, que recolhe os royalties de direitos autorais dos artistas, entre as 10 músicas mais ouvidas em casas de festas e diversões, no segundo semestre de 2021, apenas 1 não é pisadinha, e sim sertanejo. Destas nove canções, uma é de uma dupla sertaneja (Israel e Rodolffo) que está fazendo pisadinha, ilustrando as transformações que a música segue em busca de hits. Quem lidera é "Baby Me Atende", de Matheus Fernandes.

Na pandemia

Com a declaração da pandemia, em janeiro de 2020, pela Organização Mundial da Saúde (OMS), o mundo se viu repleto de restrições. As atividades artísticas, criativas e de espetáculos foram as primeiras e as mais impactadas, segundo publicação no Diário Oficial da União de 15/09/2020.

Apesar da dominância do streaming para as receitas na venda de músicas no mundo (65%), e os ganhos com direitos de difusão (em rádios, shows, festas e eventos) corresponderem a 9,4%, segundo dados da IFPI/2022, essa é apenas uma fatia da indústria da música. Outro braço é o das performances ao vivo. No caso de artistas top no ranking nacional, trata-se do grande e principal modo de captação de recursos.

Eduardo Bastos, representante da Best Produções Artísticas, descreveu o impacto da pandemia: "a pandemia foi muito ruim. Estávamos no modo automático, fazendo shows para caramba, entrando muito dinheiro aqui e alí. Quando chegou a pandemia, a gente teve que parar, dar uma respirada e repensar. Tivemos que nos desfazer de muita coisa aqui para manter os funcionários, a equipe que trabalha com a gente, o escritório. Para este lance de gerenciamento de carreira [do artista] foi muito bom. Inclusive o Paulo [Pires, artista pisadeiro lançado com sucesso pela agência], descobrimos antes da pandemia e tivemos que segurar. Com ele voltamos fazendo clipes baratos, menos gastos e investimos no orgânico".

Como "orgânico", Eduardo quer dizer o foco em serviços digitais e a gerência virtual da carreira dos artistas, além dos relacionamentos institucionais e com influenciadores digitais, amigos empresários e outros artistas. E deu certo. Hoje, a Best gerencia oito artistas, entre eles Paulo Pires, uma das últimas sensações da pisadinha. Caminho estratégico similar foi seguido pelo Sua Música. Em entrevista ao Latin America Business Stories, o CEO Roni Maltz lançou mão das lives na pandemia e acelerou os serviços digitais aos artistas. O objetivo é gerar receita para a volta da produção de shows. A Sua Música teve um crescimento de 45% em 2021.

A Cena Carioca

Pensar a música numa metrópole como o Rio de Janeiro é ter em conta a amálgama de repertórios em uma cidade eclética nos gostos, sem limitações de nichos. Em dois anos de pandemia, devido às restrições do isolamento social, o silêncio nos espaços de diversão da cidade foi substituído por rádios ou jukebox dominadas pela pisadinha. E a volta aos eventos e festas na segunda metade de 2021, com a flexibilização das restrições, confirmou como o estilo caiu no gosto do carioca. A prova está nos testemunhos coletados por essa reportagem, que mostram o sucesso da pisadinha em festas alternativas de universitários, representantes da cultura pop negra do Rio de Janeiro e em bailes funk.

O DJ Maik Bistrô, que toca em eventos e festas de casamentos, depõe:

"O funk sempre foi o ritmo mais tocado nos casamentos das classes C e D. Ainda continua muito forte! Porém, com as plataformas de streaming, Tik Tok (principalmente), Spotify, Youtube... Ajudou a popularizar músicas que até então eram regionais, tipo: pisadinha, funks de outros estados, música pop nacional e internacional. Músicas essas que dificilmente e por motivos culturais não entrariam nas favelas."

O DJ havia parado por mais de um ano as atividades e no final do ano passado notou a diferença:

"Foi bem engraçado. Saindo da primeira onda de Covid, voltando aos eventos, o cenário musical já era outro. O que antes tocávamos funk, eletrônica, pop e sertanejo, voltamos com pisadinha, eletrofunk e mais pisadinha. O ritmo 150 BPM, que era o auge, não agradava mais tanto assim e agora o que voltou a fazer sucesso são os ritmos em 128 BPM. Tudo mudou nos eventos e continua mudando", conclui.

O DJ Samurai, que já tocou nos bailes funk da Rocinha e do Tabajaras, hoje toca no Mirante Rocinha e em eventos grandes. Analisa também as mudanças recentes nos bailes funk com a inserção de repertórios antes estranhos à comunidade. "Antes era funk do começo ao fim. Só mudava os tipos de batidas. Hoje, mudou toda a estrutura, rola forró, trap, e até uns axés [music] às vezes. O piseiro tomou espaço porque tem uma batida acelerada, isso que diferencia. Em bailes toca cerca de 20 a 30 minutos, e toca todas as músicas [que estão nas paradas de sucesso] e o público canta todas. Em evento, chega a uma hora [de duração] deste segmento". No entanto, o DJ critica: "o piseiro tem entrado enquanto espaço comercial, não como cultura. O funk, mesmo sendo comercial hoje, é cultural, assim como o forró".

DJ HD, cria do Jacaré, tem uma visão positiva. "Depois que chegou o brega e o priseiro, os bailes e festas que nós DJs fazemos têm ficado melhores, mais divertidos e satisfatórios ao público presente. Misturando esses ritmos com o funk, tem sido muito bom para a imagem que muitas pessoas têm sobre o funk de favela."

Léo Bigmix é um dos DJs que tocam no Caldeirão da Sul, o baile funk do Morro Santo Amaro, no bairro do Cetete. O primeiro a lançar a música eletrônica no baile da comunidade, em 2004, toca de tudo, de James Brown a La Bamba. "Os outros ritmos já fazem parte do funk porque o funk já é uma mistura. Você pode pegar um pedaço de pagode ou sertanejo e fazer um ponto, um beat e fazer um som. Eu fazia 'A Raia do Fogoteiro' e 'Morro dos Prazeres' e sempre fui conhecido por fazer misturas. Mas há uma imposição à mistura sobre os novos DJs que é uma imposição do mercado", relata.

Na "pista" de dança dos bailes, assim como de maneira geral na cidade, a aceitação da pisadinha é unânime. Sábado à noite é dia do baile Caldeirão da Sul, no morro Santo Amaro, e atrai públicos de toda região central e sul da cidade. Dia 9 de abril foi mais um desses dias. Pudemos ver turistas, porém, a maioria dos frequentadores é de moradores. Faiana, 19 anos, disse que "a gente dança tudo o que vier, adoro pisadinha, funk, samba, tudo isso é cultura". Ana Clara completou: "favela é isso mesmo, aqui rola tudo".

A pisadinha no baile seguia na sequência de faixas do funk, levada pelo ímpeto da performance corporal, das coreografias apresentadas nos vídeoclipes do gênero nordestino. Em comum com o piseiro, só as coreografias e a proeminência da figura masculina, do "cabra macho". Um grupo de funkeiros fazem um alinhamento em coreografia com a mão na frente da genitália. Outro grupo de mulheres jovens dançam o rebolado do funk. As referências simbólicas do Nordeste aqui foram totalmente abstraídas e absorvidas pela cultura do paredão do funk carioca.

"Volta Bebê, Volta Neném", tocou no baile e tem o refrão "eu tô com saudade daquela sentadinha que tu tem (volta bebê, volta neném)". O refrão traz o sentido de cantar junto e o clipe é acompanhado pela coreografia feminina do rebolado agachado até o chão. No baile, a realização da experiência musical performática, nota-se um 'refrão corporal' feito pelas meninas, reforçando o dançar junto. Igualmente dos homens, com o movimento do vai-e-vem dos quadris. Há o encontro aqui do "refrão visual" de Jeder Janotti e Tiago Soares, em "O vídeoclipe como extensão da canção: apontamentos para análise" e o "enfrentamento moral, entre o tradicionalismo das relações sociais (afetivas e sexuais) do sertão‘ e a modernidade‘ da prática moral (propriamente sexual) da cidade", segundo Felipe Trotta em "Música Popular, moral e sexualidade: Reflexões sobre o forró eletrônico".

A pisadinha dentro do baile funk ultrapassa os limites do termo "estética do paredão", que foi atribuído ao piseiro por Ribamar Júnior e Wallison Araújo no artigo "Masculininades de plástico e prótese de aparelhagem: o nordestino do Piseiro na performance pop do forró eletrônico no Nordeste contemporâneo".

Ribamar Júnior, que é doutor em Comunicação Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), em entrevista, resume o conceito de "estética do paredão" no forró eletrônico da Pisadinha:

"A estrutura do paredão compõe todo um repertório cultural. É muito interessante pensar esta relação entre cantores, produtoras e este ritmo.Não é só a abordagem da 'estrutura do paredão" pelo consumo, mas exatamente o que atravessa esta complexidade entre a produção e o consumo. Porque quando a gente está tratando da indústria cultural contemporânea, a exemplo de um gênero tido como tradição a exemplo do forró, a gente está falando de como ele vai se hibridizando, como o forró vai reprocessando estas invenções tradicionais que se tem do imaginário mesmo do Nordeste, ou de um gênero musical que cartografa este mesmo nordeste, para pensar nessa complexidade entre gêneros musicais. Pela fruição do espaço, pela partilha sensível deste mesmo consumo nestes mesmos espaços", reflete. 

O paredão enquanto repertório cultural está relacionado à associação entre a estrutura dos paredões da Furacão 2000, dos bailes funk de 150 BPM, da aparelhagem do reggae do Maranhão e do tecno-brega do Pará, enquanto hibridizações regionais, e a performatização da cultura pop internacional, de Madonna a Beyoncé, Lady Gaga ou Rihanna, Black Eyed Peas, Snoopy Dog, etc, e o uso dos corpos em shows e videoclipes.

Porém, nos bailes funk, a explicitação e exclusiva temática sexual abole qualquer negociação moral dentro das melodias ou temáticas como o forró eletrônico da pisadinha ainda mantém. Em comum ao funk está a  eliminação do duplo sentido, no entanto a vertente maliciosa se mantém pela combinação com temáticas amorosas nas letras.  

Rocinha

Falar de música nordestina no Rio de Janeiro nos remete à Feira de São Cristóvão. Segundo a historiadora Sylvia Nemer, em "São Cristóvão: foi assim que começou", teve sua origem entre os anos 1940 e 1950 enquanto ponto de desembarque de caravanas e paus-de-arara vindas do nordeste, atráidos pela busca de trabalho e melhores condições de vida quando o pavilhão estava em construção. Bairro abandonado pela elite, o local era pousada destes retirantes que ali acampavam permanentemente atrás de "bicos" e trabalho e, na falta de emprego, começaram a vender cordéis, quitutes e estabeleceram o local como fonte de troca e venda de alimenos e artefatos. Foram 50 anos de marginalização até que, na década de 1990, foi criado o atual Centro de Tradições Nordestinas no mesmo pavilhão.

De lá pra cá, a força do movimento migratório continua. O destino são as áreas da cidade onde a elite virou as costas: as favelas. Atualmente, segundo senso do IBGE 2010, cerca de 1,5 milhão de nordestinos vivem no Rio de Janeiro, com as maiores concentrações na capital, em Duque de Caxias e São Gonçalo. Um estudo do IBGE concluído em 2005 apontou que 40% (39.504) dos 98.808 nordestinos que migram para o município do Rio de Janeiro, entre 1995 e 2000, tiveram como destino as favelas cariocas. Dos que chegam do Ceará, 50% param lá. Os paraibanos, 47%.

Logo, ao falar de forró e cultura nordestina, temos que ir ao encontro dos reais protagonistas na divulgação desta cultura na cidade, a força de trabalho bruta que carrega o Rio de Janeiro nas costas. No município da capital, Rocinha e Rio das Pedras são verdadeiros celeiros da moradia destes cidadãos.

A favela da Rocinha, "a maior do mundo" como é chamada pelos seus moradores, tem um foco de encontro e uma feira na conhecida Estrada do Boiadeiro. Lá encontramos a Nova Casa Nordestina, onde vende quitutes regionais, rapaduras, biscoitos, doces, farinha d'água, farinha de puba, tapioca, bolos de mandioca, entre tantos outros. Também há uma filial na Estrada da Gávea 99 e barracas de feira espalhadas na comunidade. Mas há a Casa Nordestina original, também no Boiadeiro, onde encontramos Edelberto e Irineu Barbosa, sanfoneiro e tocador de triângulo do Trio Cariri, um dos quatro conjuntos musicais que tocam forró tradicional ou pé-de-serra na comunidade.

Há mais de 40 anos na Rocinha, Edelberto, ou Betão, é sanfoneiro desde garoto, é de Campina Grande (PB) e já tocou por cinco anos consecutivos na Feira de São Cristóvão antes de formar o grupo. Já se apresentou no programa "Encontro com Fátima Bernardes", e no do Jô Soares. Betão se define como eclético musicalmente, mas é um fiel transmissor da tradicionalidade. Criou o forró no Largo do Boideiro há mais de 12 anos. Seu filho é sanfoneiro da gravadora do piseiro Zé Vaqueiro, conforme testemunhou para o Rocinha em Foco, mídia comunitária local.

Embora Betão não tenha preconceitos, encontramos o cearence Zequinha, vocalista do outro grupo de forró tradicional da comunide, ao lado o tocador de zabumba, o paraibano Josué Borges Leitão. Zequinha é morador da Rocinha desde 1970 e vê o ritmo com desconfiança: "pisadinha toca uma semana [metaforicamente], depois o povo esquece. O tradicional nunca morre".

Zequinha alerta para esse conflito geracional com a nova configuração do forró eletrônico que, no próprio interior e cidades do Nordeste, ofuscou e exclui do mercado os forrozeiros tradicionais. "No Norte, em Campina Grande no estado da Paraíba, a turma da antiga está toda revoltada e até briga lá. Só contrataram pisadinha, aqueles famosão. Fábio José, Alcimar Monteiro, Noque de Paulo Afonso, Romero de Itaperuá, deixaram tudo de fora. Está uma confusão por lá. Os caras que sofreram tanto, seguraram a bandeira do forró para o país ficaram todos de fora. A pisadinha, pode chamar de forró uma coisa dessas?", reclama Zequinha. 

Mais embaixo, ainda no Largo do Boiadeiro, a jovem Fabiana estava comprando tapioca na barraca da Nova Casa Nordestina. Residente há três anos da comunidade, ao ser perguntada sobre o forró contemporâneo, diz preferir o forró tradicional. "Pisadinha não, já fui pisada [risos]. Eu prefiro o pé-de-serra por causa das letras também". Num grupo de conversa entre descendentes da terrinha, Ana confessa que "o que tocar a gente dança, pisadinha, tudo, pisadinha é forró, mas se for para comparar, eu prefiro o pé-de-serra". Um cearence de 62 anos de idade, que não quis se identificar, desde 1970 na comunidade, também prefere o tradicional, porém seu amigo Paulo Sérgio, de 49 anos, diz: "quando a gente está bebendo, [a pisadinha] tem um ritmo legal, bom de dançar, a gente dança o que rolar".

Encontramos a síntese dessa mistura cultural e de gerações na casa noturna Cabaré do Barata, na via Ápia, nº 9, uma das mais antiga casa de festas da Rocinha. A casa funciona todas as sextas-feiras, sábados e domingos. O Barata, ou Joãozinho, é responsável por esse espaço cultural que é um pólo de encontro de várias gerações, onde convivem todos os repositórios de memória fonográfica que o forró tem passado desde o século XX. Ali se atualizam e reatualizam as memórias sonoras. A casa recebe bandas de cover de forró de vários estados como do Ceará e ainda promove um festival de forró.

O destaque são os artistas pouco visibilizados no grande mercado, como Déo Seresteiro e Sexy Love, além de repertórios mais locais do nordeste, como Chicão do Maranhão, Lairton dos Teclados, que trazem toda uma espacialidade geográfica afetiva de regiões de onde muitos migrantes vieram, a característica mais interiorana. Desta forma, produz uma superposição de escalas não só de territórios de memórias, porém da desigual circulação de artistas do forró. Assim, o Cabaré do Barata compõe um santuário de atualizações da memória do forró. Jovens migrantes ou descendentes reavivam não só a pisadinha como têm a oportunidade de acrescentar repertórios de forrós mais tradicionais, do tempo dos seus avós.

ANF
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