Rap Brasil: A histórica revista agora é peça de museu
Revista que contou a era de ouro do hip hop nacional terá todo seu arquivo digitalizado pela Unicamp
Depois de terminar o colegial e com 18 anos, Alexandre De Maio ainda não sabia que inscreveria seu nome na história do hip hop nacional com a revista Rap Brasil. Na época, era mais um jovem paulistano dos anos 1990 que tinha as bancas de revista como um segundo lar. Em uma época de internet discada e nada acessível para as camadas mais populares, o espaço apertado dentro de um cubículo de metal abarrotado de publicações de todos os tipos era uma espécie de portal que levava a um outro mundo.
No final dos anos 1990 era possível encontrar de tudo nas bancas de jornais e revistas. Foto de mulher pelada, os últimos lançamentos de carros importados, informações sobre o que iria ocorrer na novela em determinada semana, explicações sobre programas de computador, fofoca e exibicionismo de subcelebridades, pôsteres de bandas de rock. Só não tinha nada que abordasse a cultura hip hop, que crescia cada vez mais no país.
O movimento hip hop começou a dar seus passos no Brasil pouco mais de 10 anos antes de Alexandre de Maio acabar seus compromissos escolares. Morador da zona norte de São Paulo, hoje residindo na Casa Verde, o garoto, que sabia que não iria para faculdade naquele momento, decidiu que estava na hora de se dedicar às suas paixões: rap, desenho e revistas.
“Eu sempre gostei de quadrinhos. Por isso sempre estava nas bancas procurando algo novo. Aprendi a diagramar sozinho, lendo muita revista (risos). É nessa mesma época que o Racionais lança o Sobrevivendo no Inferno e a primeira música que eu ouvi foi ‘Capítulo 4, Versículo 3’. Aquela parada de começar falando das estatísticas me impactou muito e me deu um estalo para começar a desenhar sobre coisas parecidas”.
As primeiras histórias desenhadas nesse período foram sobre um crime de bala perdida ocorrido na vizinhança, a música “Tô Ouvindo Alguém me Chamar”, do Racionais MC’s, e um som do Consciência Humana, “Lembranças”. Nascia ali o embrião do que viria a ser a mais importante publicação sobre a cultura hip hop brasileiro, a revista Rap Brasil.
Em dez anos de existência, a Rap Brasil mostrou a fase de ouro do estilo no país, onde grandes nomes do gênero eram exaltados em uma mídia que falava a mesma linguagem dos artistas que, hoje são consagrados, e à época davam seus primeiros passos. Agora esse material, que inclui 115 edições de títulos como Rap Brasil, Rap Rima, Planeta Hip Hop, Grafitti e Rap News, irá para o Arquivo Edgar Leuenroth (AEL), da Universidade de Campinas (Unicamp), que está organizando o primeiro Arquivo do Hip Hop Brasileiro e vai digitalizar todo acervo guardado por De Maio.
A rede social da época
Com suas histórias em quadrinhos debaixo do braço e a ideia de criar uma revista especializada na cabeça, De Maio fez seu corre. Apresentou o seu trabalho para diversas pessoas do meio editorial e as palavras que ouvia o faziam ter certeza de que, além de unir as coisas que mais gostava, a sua ideia também era um negócio viável. “Eu era um moleque desconhecido, mas quando os caras como o Ice Blue, que já estava na caminhada há muito tempo, achavam meu trampo da hora, eu sabia que a revista poderia vingar”, lembra.
Nessas muitas tentativas de achar quem topasse entrar de cabeça em um revista segmentada para os quatro elementos do hip hop (MC, grafite, DJ e break), De Maio encontrou a Editora Escala, que tinha em seu catálogo publicações consideradas alternativas. Em março de 1999, chegou às bancas a primeira edição da Rap Brasil, com a tiragem de 30 mil exemplares, a R$ 3,90. Todos se esgotaram em pouco tempo. Segundo De Maio, a tiragem se manteve nesse patamar até o fim (“talvez um pouco menos, pelo mercado ter se fragilizado”), quando cada exemplar custava R$ 5,90.
“Lembro que o chefe da editora veio me perguntar o que aconteceu, porque além de esgotar todas as revistas já na primeira edição, tinha gente de diferentes lugares do Brasil pedindo mais exemplares”, conta De Maio, recordando que, em seu auge, a revista recebia por mês um número de cartas de leitores que dava para encher um saco de lixo de 50 litros. “Vinha de tudo. De pedidos de anúncio a convites para festivais de rap em Belém.”
Para De Maio, que contava com o publisher Marques Rabelo como parceiro de trabalho, muito mais do que divulgar o que estava acontecendo no rap naquele momento da história, a Rap Brasil serviu para conectar pessoas em uma era pré-redes sociais. “Através da revista, os caras que faziam som no Maranhão conseguiam saber o que rolava no Rio de Janeiro e trocar ideia com a galera da cena de lá. Antes a gente nem imaginava que tinha gente fazendo rap naquela região”.
A evolução e memória do rap
Referência na imprensa especializada em rap, De Maio nunca sentou numa cadeira da faculdade de comunicação. Mas, por meio da revista, conseguiu feitos que repórteres com muitos anos de estrada nunca conseguiram. Durante muito tempo, por exemplo, nenhum integrante do Racionais MCs concedia entrevista a grandes veículos de mídia. A Rap Brasil tem em sua história diferentes capas com cada um deles: KL Jay, Edi Rock, Ice Blue e Mano Brown. A edição de cinco anos, com Brown na capa, foi a mais icônica para De Maio: “Era uma época que ele não dava entrevista pra ninguém”.
Para o editor, repórter, fotógrafo e diagramador, a melhor parte de fazer a Rap Brasil era a preparação da capa e seção de lançamentos de novos discos. “Era muito legal ouvir os sons novos que a galera estava fazendo. Teve edição que rolou de sacar 38 discos novos de artistas em apenas um mês”, contabiliza.
O trabalho às vezes era intenso, a depender da pauta. A capa com Rappin Hood, que falava da influência da música brasileira no som gringo e vice versa, demandou bastante: “Tive conversar com mais de 30 pessoas para falar sobre diversos generos brasileiros como chorinho, samba, bossa e forró que estavam sendo incorporados no rap”.
Além de intenso, o corre às vezes era tenso, como quando subiu pela primeira vez um morro do Rio de Janeiro, que prefere não identificar, para cobrir um festival. "Fomos bem recebidos pelo dono do morro, mas era tenso entrevistar uma galera com fuzil e granada na mão mostrando foto da família. Não deu nenhum perrengue. Deu tudo certo, mas foi inusitado”, rememora De Maio.
Nomes que ao longo do tempo extrapolaram o rap e entraram para o hall da música popular brasileira com a reverência merecida, apareceram pela primeira vez nas páginas da Rap Brasil. “Eu que fiz a primeira entrevista com o Sabotage, quando o RZO estava gravando ele. A primeira vez que se falou em Criolo na imprensa foi com a gente. O Emicida, além de ter aparecido na revista, era leitor da Rap Brasil”. Tanta dedicação chegou a ser premiada em 2000, quando ganhou o prêmio Hutus, organizado pela CUFA, como melhor veículo de mídia hip hop do Brasil.
Saber que hoje há inúmeros canais, blogs, perfis, podcasts que tratam do rap traz uma enorme felicidade para De Maio. “Hoje, o hip hop está no lugar que a gente sempre desejou”, enfatiza.
“Costumo dizer que a época que a Rap Brasil esteve nas bancas foi a era do ouro do hip hop brasileiro. Está tudo lá. Quem quiser saber o que aconteceu no rap nacional no seu auge é só ver o que está nas páginas da revista”, ratifica.
O fim da Rap Brasil coincide com a falência do mercado de revistas no país. Dolarização da matéria prima, expansão da internet e o monopólio predatório de grandes editoras e distribuidoras em detrimento das menores, fez com o que as bancas deixassem de ser grandes fornecedoras de diferentes conteúdos e se tornassem o simulacro de lojas de conveniência de hoje, onde o negócio da informação foi substituído por badulaques, bebidas e outras necessidades mais imediatas dos pedestres.
Das bancas para a universidade
Diferente de várias publicações que migraram do papel para a internet, De Maio preferiu encerrar a Rap Brasil e se dedicar a outras atividades, sempre ligadas com o rap e com a cultura da periferia. Mas de uma década após o fim da revista e com muito material em casa, ele temia o que poderia acontecer com o seu acervo.
“Estava com caixas e mais caixas de revistas e fotos aqui em casa e estava com medo de que isso se estragasse. Até tentei começar a digitalizar o que eu tinha e vi que sozinho não ia ter como fazer, tamanho o volume de coisas que tenho”, ressalta.
À procura de quem pudesse o auxiliar na missão, chegou até ele a proposta dos pesquisadores da Unicamp que estão digitalizando e catalogando todo material dos dez anos da Rap Brasil. Saber que o trabalho de uma década não será perdido e ainda servirá para ser estudado pela academia, dá um grande alívio para o ilustrador.
“Vai ser importante porque eles vão deixar tudo no esquema para quem quiser pesquisar o que fizemos nesse tempo. Eles têm toda uma expertise de colocar palavras chaves para pesquisa, scanners profissionais que deixarão todo esse material em alta qualidade, algo que eu nunca poderia fazer. Além de tudo, é uma forma de preservar a história do rap brasileiro”.