Em Pernambuco, desenvolvedores de periferia reagem ao racismo da IA
Contra preconceitos e crimes da Inteligência Artificial, ativistas empoderam tecnologicamente a periferia
No Recife e Região Metropolitana, várias iniciativas são desenvolvidas coletivamente para resgatar valores ancestrais, democratizar o acesso às tecnologias e promover a diversidade no meio tecnológico, sobretudo em um ambiente em que a Inteligência Artificial é cada vez mais presente.
É o caso do trabalho realizado pelo Laboratório de Tecnologia para Promoção da Identidade Negra, Indígena e de Periferia, o LABCoco, em Olinda. Ele é idealizado pela ialorixá, musicista, mestra coquista, comunicadora popular e Patrimônio Vivo de Pernambuco, Mãe Beth de Oxum.
Desde 2015, o LABCoco qualifica jovens para atuar profissionalmente em diversas áreas do conhecimento tecnológico, como roteiro, game design, design gráfico, sound design e programação. Para Nin La Croix, que atua na criação, pesquisa e inovação do projeto, a atuação visa, primeiramente, o resgate das tecnologias ancestrais, combatendo uma estratégia de apagamento.
“Nós atuamos desenvolvendo ações, metodologias, formações, articulações políticas para fortalecer o pertencimento e identidade de um lugar, da população negra, indígena, de matriz africana, periférica, de diferentes gêneros e sexualidades dentro da tecnologia, com pensamento crítico, protagonizando valores que não são encontrados dentro da estrutura hegemônica”, explica.
Aos 35 anos, Nin La Croix é uma pessoa trans não-binárie que mora no bairro de Guadalupe, periferia de Olinda. “Entendo que a tecnologia não é uma força em si, não é boa nem ruim. Ela é uma ferramenta desenvolvida para apoiar e potencializar os interesses de quem está no poder de desenvolvê-las, e isso pode trazer benefícios para um grupo e malefícios para outros, principalmente quando esse monopólio está nas mãos de pessoas com valores brancos, patriarcais, cis, heteronormativos, de alto poder aquisitivo e que defende a lógica de exploração do outro.”
Desenvolvendo tecnologia de quebrada
O jovem indígena Kaburé Kaete, morador do bairro de Santo Amaro, periferia na zona norte do Recife, começou no LABCoco como professor do módulo de empreendedorismo e logo passou a integrar a equipe de tecnologia, desenvolvendo jogos e criando através da inteligência artificial.
Ele se interessa por tecnologia desde menino. “Não sei exatamente quando, mas sei como: através da leitura de histórias de ficção científica”. Para ele, tecnologia é tudo aquilo que auxilia no desenvolvimento de um povo “e aprendi muito sobre isso com a minha família e no terreiro”.
Na adolescência, estagiou desenvolvendo tecnologia associada ao marketing. Hoje, aos 28 anos, é artista, empreendedor, programador, copywriter e game design. No LABCoco, integra a equipe que vem estudando o uso crítico e responsável das inteligências artificiais, inclusive para utilização no novo projeto chamado Tecnologia de Quebrada, que está sendo realizado em parceria com o Consulado Britânico.
Oportunidade surge através da necessidade
Recentemente, em uma visita virtual à comissão do TECH HUB, do Reino Unido, a equipe do LABCoco pôde apresentar o primeiro resultado desses estudos. O avatar de Mãe Beth conduziu em língua inglesa uma apresentação.
A inteligência artificial realizou a direção, montagem, texto e voz clonada, mas a animação e dublagem é de Nin La Croix. A imagem do avatar, também gerada por inteligência artificial, foi desenvolvida por Kaburé Kaete.
Ele conta que “nós tínhamos a necessidade de ter o domínio de uma ferramenta que estava nas mãos apenas do colonizador. O processo de desenvolvimento começa através de criar o avatar de uma figura marcante, que é Mãe Beth”.
Preconceito e exclusão tecnológicas
Pesquisa realizada no ano passado sobre diversidade e mercado tecnológico pela PretaLab constatou que 33% de empresas do setor de tecnologia não têm uma pessoa negra. Nos outros 67%, não chega a 10% dessa população. Estes dados não surpreendem o artista visual pernambucano Anderson Oliveira, que também é cofundador do Science Studio.
A iniciativa realiza experimentação de novas tecnologias na produção artística, focando na pesquisa da representatividade de estéticas locais em contextos virtuais globais e nas influências geográficas e antropológicas na Web3.
Recentemente, durante o Festival Recplay Recife, em um debate sobre os limites do acesso à tecnologia no Brasil, Anderson Oliveria defendeu que “a inteligência artificial, como nos foi apresentada e está posta, continua servindo como instrumento colonialista e as problemáticas causadas por ela são reflexos potencializados”.
Reflexos do quê? “De quem está no topo e por trás da criação e desenvolvimento dessas tecnologias. De quem não está preocupado com inclusão e diversidade, mas interessado na manutenção de privilégios e poder”, alerta o artista.