Nômade digital, jovem de Salvador vence racismo tecnológico
Cria da periferia, ele consegue fazer vários rolês pelo país e pelo mundo, estilo de vida reservado a brancos ricos
Os nômades digitais são pessoas que trabalham remotamente, muitas vezes na área da tecnologia e, enquanto trabalham, aproveitam para viajar ao redor do mundo. Fazem parte de um movimento relativamente recente e que cresce com adeptos como Lucas Vinicius, ou somente Lukas, de 23 anos.
Preto de Salvador, é natural da comunidade periférica de São Caetano. Ele é um dos 35 milhões de praticantes do nomadismo digital pelo mundo, segundo o Relatório Global de Tendências Migratórias, do ano passado.
Desde que adotou seu estilo de vida tecnológico e em constante movimento, Lukas conheceu diversos estados brasileiros, como Rio de Janeiro, São Paulo e Santa Catarina, além de países da América Latina, como Argentina e Chile. Ele fala na internet sobre essas experiências e, principalmente, do processo de criação de conteúdo digital humanizado e politizado, oferecendo serviços de social media, como gerenciamento de redes, mentoria e consultoria.
Segundo Lukas, a trajetória até se descobrir nômade digital e dar um nome à sua maneira de viver veio da influência de uma criadora de conteúdo, Sophia Costa. Ela foi uma das pioneiras do nomadismo digital no Brasil, como mulher preta e viajante. Através dela, Lukas enxergou e enxerga, por exemplo, o sentimento de solidão, inevitável em seu estilo de vida.
Representatividade faz diferença
Por uma barreira de representatividade, Lukas poderia viver até hoje como nômade digital sem entender que faz parte do grupo, apenas pensando que tinha um estilo de vida diferente. Mas, a partir do momento em que existe alguém que vive do mesmo jeito, ele pensa: “Espera: eu já vivo isso, basicamente, né?”.
Em seus sonhos de infância, Lukas almejava uma vida diferente da convencional. Não queria reproduzir o que sempre via, passar a vida trabalhando para, só na aposentadoria, se chegasse a ela, poder curtir o trabalho da vida toda. Mas nem por isso se imaginava nômade digital. Sua vivência era diferente do que via no Youtube e Facebook.
Quando pesquisava na internet por viagens, intercâmbio e mochilão, via o mar de pessoas brancas cujos pais pagavam intercâmbio. Ou que terminavam o colégio e tinham a oportunidade de não trabalhar, iam fazer um ano sabático.
O Lukas de anos atrás ficava se perguntando como é que eles conseguiram isso tão facilmente. Para ele, parecia distante da realidade. “O rolê da representatividade importa, né? No meu caso, eu almejava ter o estilo de vida de nômade digital, só que eu não conseguia me imaginar tendo ele, porque eu não via referências”.
Start na vida de viajante
Ao terminar o ensino médio, o social media pensava em fazer faculdade de Medicina Veterinária e, através do curso superior, intercâmbio no Canadá. Mas não foi possível.
Então ele começa um curso tecnólogo de Produção de Multimídia, para conseguir emprego. Quando surge a atividade de criar uma marca, Lukas escolhe de roupa. Terminando a formação, passa a trabalhar na sua criação de moda e, em paralelo, em uma agência, fazendo marketing de redes sociais.
Através do curso tecnólogo, Lukas passou a entender as estratégias por trás das mídias e do entretenimento. Descobriu os pontos negativos e como poderia contribuir para uma transformação no mundo da comunicação.
Foi através do trabalho na agência, de maneira remota, que teve a oportunidade de se mudar do bairro de onde é cria, em Salvador. Escolheu uma cidade pequena no Paraná, Francisco Beltrão. Tinha 19 anos e sentia que precisava de uma mudança radical em sua vida.
No Paraná, pensou em criar raízes, construir casa, mas percebeu que apenas com o salário da agência não seria possível. Independente dos obstáculos, continuou seu nomadismo. Fez voluntariado por um tempo, aproveitando a oportunidade de viajar. Aí começou a focar na criação de conteúdo digital, buscando alcançar visibilidade para o seu trabalho.
Produção de conteúdo como movimento político
A produção de conteúdo de Lukas leva em consideração marcadores sociais como raça, classe e gênero, em um ambiente dominado ainda por pessoas brancas e, em geral, com maior poder aquisitivo. Seu slogan é “a produção de conteúdo é um movimento político”.
As inteligências artificiais que regem as redes sociais privilegiam pessoas brancas. Essa é a opinião do pesquisador em comunicação e tecnologias Tarcízio Silva, que atua no Tech Policy Fellow, pela Fundação Mozilla. Para ele, o racismo algorítmico é uma espécie de atualização do racismo estrutural.
Silva descreve um ciclo de trabalho mais acessível a quem tem mais chances, a começar pela cor da pele. “O trabalho precisa de visibilidade, seja visibilidade do resultado criativo ou do rosto que representa a marca. Então, quanto mais visibilidade dentro desse mercado, mais oportunidade de trabalho. A marca cresce e traz mais retorno financeiro, a pessoa consegue investir e bancar seu estilo de vida”.
Lukas se posiciona politicamente pois criação de conteúdo e marketing digital não são temas neutros, tem relação direta com o meio social. “É muito um acompanhamento de consciência do meu corpo. Como meu corpo é político no mundo, a partir do momento que eu entendo sobre política, meu nível de consciência foi acompanhando”.