Quem é a 1ª campeã em um time masculino na Taça das Favelas
Depois de passar por uma violência sexual, preconceito e falta de incentivo, a treinadora subiu no lugar mais alto do pódio
Você sabe dizer o que um time precisa para ser campeão? Sorte, vontade, disciplina ou espírito de equipe? Se eu dissesse que além de tudo isso, a receita infalível para forjar uma equipe campeã passa pela amizade incondicional, apoio e sinergia entre uma mulher e um homem, você acreditaria?
A reportagem do Visão do Corre percorreu as ruas da favela do Jardim Ibirapuera à procura de Maria Simone de Azevedo, 36 anos, a primeira técnica campeã da Taça das Favelas no comando de um time masculino e, o que encontrou foi a história de uma amizade invejável entre uma treinadora e o diretor técnico da equipe.
Começo difícil
Simone, ou Loira, como é conhecida na comunidade da zona sul, é zagueira, volante e potiguar. Em 2004, aos 18 anos e grávida, a nordestina trocou a pequena Parelhas no interior do Rio Grande do Norte, com apenas 20.354 habitantes, segundo último censo de 2010, e percorreu quase três mil quilômetros para viver o sonho da megalópole São Paulo: ser feliz e ganhar dinheiro.
No entanto, a capital das oportunidades também é a cidade que mói e destroça sonhos sem piedade. Ao chegar, Simone foi vítima de violência sexual praticada por um parente. O abuso deixou traumas profundos, mas, por outro lado, também fez emergir uma mulher ainda mais valente. Alguém que, vez por outra, precisa de um freio para não atropelar a tudo e a todos.
“Depois dessa violência física e psicológica que sofri, tive que continuar a vida e me tornei dançarina de forró aos finais de semana. Como meu filho tinha apenas seis meses de idade, durante a semana eu trabalhava como auxiliar de produção também”, lembrou.
Casamento e falta de incentivo
Durante este período, a técnica conheceu o atual marido, o cearense José Alves de oliveira, 41 anos, e juntos fixaram residência na comunidade do Jardim Ibirapuera. Assim que identificou um time de futebol feminino próximo da sua casa, Simone dividiu com José a vontade de ser uma daquelas jogadoras, mas o preconceito e a falta de informação do cônjuge rapidamente se transformou em obstáculos a serem ultrapassados.
“Na época meu marido era preconceituoso e não sabia das coisas. Ele me dizia que se eu treinasse viraria lésbica e eu sempre respondia que isso não era verdade, o que gerou muitas brigas dentro de casa e mesmo assim eu nunca desisti e fui jogar bola”, destacou.
A paixão por futebol começou antes mesmo de Simone completar o ensino fundamental. Aos 12 anos, em sua cidade natal, a técnica jogava bola entre os meninos e meninas do bairro em que morava. Sua trajetória na várzea paulistana teve início como jogadora, mas, em pouco tempo, o time ficou sem treinadora e a nordestina do interior do Rio Grande do Norte se tornou técnica do time Simplicidade Futebol Feminino, do Jardim Ibirapuera.
O time fez diversos jogos e participou de vários campeonatos na capital e no interior de São Paulo com Simone no comando técnico. Entretanto, nem as atletas, tampouco a técnica tiveram qualquer incentivo externo para continuar com o esporte. “Era muito difícil conseguir uniforme, caneleira, chuteira e incentivo, quem dirá patrocínio. A várzea não apostava nos times femininos, mas eu sempre acreditei”, ressaltou a treinadora.
Dupla vencedora
A sensibilidade de Simone transcende as quatro linhas do campo de futebol e foi como líder comunitária, atendendo a um pedido de ajuda de Marcos Paulo Calixto Ferreira, 41 anos, que a amizade teve início. O laço entre Simone e Marcos logo foi apertado, quando a técnica enxergou em Salgadinho – apelido do diretor técnico – uma potência como líder e o convidou para fazer parte da comissão técnica do time feminino.
“Eu tenho uma admiração enorme pela Simone, porque quando ela me chamou para o time feminino, eu não aceitava meu próprio filho que é gay e ela me ajudou a quebrar esse preconceito. O futebol feminino me deu uma lição de vida e hoje chamo as jogadoras de minhas meninas e consigo dizer um eu te amo verdadeiro para o meu filho”, afirmou Salgadinho.
Durante o ano de 2019, a dupla se preparou para disputar a Taça das Favelas com o time feminino, mas, como em um roteiro de cinema, apenas uma vaga foi sorteada para o Jardim Ibirapuera e não era para o time feminino. Ali começava a história de Simone como técnica do time masculino do Jardim Ibirapuera.
Com a ajuda do seu fiel escudeiro, Salgadinho, a técnica organizou um time e convidou Arnaldo Moura, 61 anos, o Pastel, para ser o auxiliar técnico e os treinos começaram. Segundo a dupla, “amistosos contra meninos de categorias superiores e palestras com psicólogas foram realizadas” e isso fez uma equipe mais engajada, pronta para vencer qualquer que fosse a batalha. Dessa forma, em 2022, a equipe chegou à final do maior torneio entre times de várzea do Brasil e se sagrou campeã.
Simone foi a primeira técnica a levar um time masculino à final da Taça das Favelas e levantar o troféu de campeã. Mas, o que ficou de legado dessa conquista é a surpreendente história de amizade, superação e desafios vividos por um homem e uma mulher da periferia de São Paulo que fizeram do futebol uma ponte para construir um futuro melhor.
“Nós estamos estudando gestão pública juntos, fomos campeões juntos e não pretendemos parar nestas conquistas não. Queremos conquistar o Favelão [campeonato brasileiro das favelas] e no ano que vem teremos dois times na Taça das Favelas, o masculino e um feminino também para quem sabe trazer dois troféus para o Jardim Ibirapuera”, revelou Simone.