Time feminino faz roda de leitura antes dos treinos em SP
Garotas do Parque Regina, na zona sul da capital paulista, treinam mente e corpo e abrem nova perspectiva para jogadoras
O time de futebol feminino Garotas do Parque Regina, na zona sul de São Paulo, promove rodas de leituras como parte da preparação. Toda quinta-feira, antes dos treinos com bola, fazem uma hora e meia de conversas sobre obras literárias. Depois vão a campo. O time surgiu em 2021 e vem crescendo sua participação em competições.
O time de futebol feminino Garotas do Parque Regina, na zona sul de São Paulo, treinou na tarde de ontem. Antes do treino, passaram uma hora e meia na roda de leitura debatendo o livro Tudo Nela Brilha e Queima, de Rayane Leão. Com a mente exercitada, foram a campo.
Os dois exercícios acontecem toda quinta-feira, desde o começo do ano. A roda de leitura batizada de “Entre as Linhas do Campo e as Linhas dos Livros” acontecerá por seis meses.
As atletas leem literatura, mas também obras futebolísticas. Estudam tática, como na semana passada, quando debateram o esquema tático 4-4-2 e, em seguida, foram a campo praticar.
Serão seis livros lidos em seis meses, além de atividades culturais. As obras são doadas às atletas, para que iniciem seus acervos. O time de futebol, que vinha mudando a perspectiva das jovens, agora mexe mais ainda com a cabeça das futuras profissionais – se não se tornarem jogadoras, serão melhores cidadãs.
Leitura quebra tabus
Samira Silva Alcântara, 17 anos, meio-campista com tendência à lateral-esquerda, chuta com as duas pernas. Está concluindo o ensino médio e quer fazer faculdade de Educação Física, aliando o conhecimento ao esporte.
Moradora do Parque Regina, Samy foi a última do time a aderir às rodas de leitura. “Não vou mentir: para uma menina que vive jogando futebol, eu lia por obrigação. A roda de leitura me pegou desprevenida. Entendi que preciso ter a cabeça formada para ser uma outra pessoa na vida”, diz.
Para ela, as rodas de leitura “abriram a mente” e “quebraram tabus”. Fez pensar em muita coisa fora de campo, e melhorou o raciocínio dentro das quatro linhas. “A gente percebeu que não é só chutar uma bola. Tem que prestar atenção nos detalhes e a leitura ensina isso”.
Passada a resistência inicial, ela está lendo bem mais do que as nove páginas sugeridas por dia. “Eu leio o livro e quero mais. É inesperado, não achei que ia gostar”. Mas gostou, assim como outra meio-campista.
“Mudou muito meu ponto de vista”
A volante são-paulina Sarah Ferreira dos Santos mora no Jardim Ingá. Filha de diarista e balconista, cursa Publicidade e Propaganda e está adorando, tanto quanto o time de futebol e as rodas de leitura.
Ela conta que, nos anos iniciais da escola, até tinha interesse por leitura, mas depois foi acabando. No ensino médio, a perspectiva era de arrumar trabalho, ir para a faculdade. “Eles não conseguiram me mostrar que ler é prazeroso”, conta.
Sara descobriu esse prazer com o time de futebol e, depois, com a roda de leitura. Ela gosta da maneira como a discussão é conduzida, com liberdade que inclui, por exemplo, a maneira como cada participante quer ficar, se sentada, deitada, encostada na parede.
As rodas acontecem no bar do campo de futebol do Parque Regina. O estabelecimento comercial ficava fechado durante a semana, agora está ocupado por discussões sobre literatura.
“Estou gostando demais, mudou totalmente meu ponto de vista”, diz Sara sobre o livro Tudo Nela Brilha e Queima. “Cada pedacinho lembra de alguém, de uma passagem da nossa vida, é muito bacana”.
Atleta e apaixonada por literatura
A ideia do clube de leitura veio de Mayara Leite, 27 anos, com um corre que passa pelo futebol e pela cultura. Formada em Educação Física, chegou ao Garotas do Parque Regina para manter a forma física e se livrar de uma depressão, mas foi se envolvendo cada vez mais.
“Redescobri um amor pelo futebol, uma vontade de jogar, que eu nem lembrava que um dia eu tinha tido”, conta Mayara. Cria da favela Vila Praia, no Campo Limpo, joga futebol desde criança, passou por escolinhas, mas teve que largar o futebol para ajudar nas despesas de casa.
“Meu sonho era ser jogadora, mas não tinha muita perspectiva, as amigas que eu conhecia e tinham contratos, ganhavam meio salário-mínimo”, lembra. Mas o trabalho na Biblioteca Comunitária Djeanne Firmino abriria portas, levaria Mayara a se interessar por cultura, leitura, a frequentar exposições e saraus, como o famoso Sarau do Binho.
Ela trabalhou por sete anos na Biblioteca. “Foi minha formação como mediadora de leitura e produtora cultural”. Mayara levou essa formação para os campos, redigiu um projeto de incentivo cultural, foi aprovada, e começou as rodas de leitura neste ano.
Time vem crescendo e aparecendo
O time de futebol Garotas do Parque Regina existe desde 2021. Estão se estruturando, apesar da perda do técnico Pituca no começo deste ano, um incentivador do futebol feminino. As garotas estão tendo apoio psicológico de outra mana da quebrada.
O time está inscrito na Taça das Favelas e disputa a Copa da Paz – conhecida na várzea, acontece na Arena Palmeirinha, em Paraisópolis, pagando R$ 120 mil ao campeão masculino e 24 vezes menos para as campeãs femininas, R$ 5 mil.
A tática para enfrentar esses e outros obstáculos é aliar inteligência e resistência física. As garotas ainda marcam jogos aos domingos, quando não trabalham e o transporte público é gratuito. Uma perua é emprestada em algumas ocasiões.
Com o clube de leitura, os planos do Garotas do Parque Regina passaram a ser para dentro e fora de campo. Querem ganhar campeonatos e, ontem, terminaram a leitura de Tudo Nela Brilha e Queima, de Rayane Leão.
Receberam a nova obra a ser lida, desta vez, sobre futebol. Trata-se do mangá Sayonara, Futebol, com protagonista feminina. Pela frente ainda virão escritoras negras, o poeta Sérgio Vaz e, claro, Quarto de Despejo, de Carolina Maria de Jesus, que fechará o ciclo.