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2001 - Uma Odisséia
no Espaço
de
Stanley Kubrick
Cinema
é espetáculo para o público, ou é meio de expressão para um autor? Cinema
é impacto visual, efeito especial, ou é história bem contada, ousadia
narrativa? Cinema é conteúdo, é preocupação com o que dizer, ou é forma,
habilidade para tornar qualquer tema um bom tema? Questões históricas,
recorrentes, que poderiam ser respondidas com outra pergunta: você já
viu um filme de Stanley Kubrick?
Nenhum outro cineasta da segunda metade do século conseguiu equilibrar
com tanta perfeição a grandiosidade tecnológica do cinema, o deslumbre
da imagem, com a essência da linguagem, o mergulho no "texto" de um filme.
As realizações menos bem sucedidas de Kubrick são bons filmes. As mais
bem sucedidas (e são várias) são obras-primas.
Sua morte é o fim de uma era. Quem se aproxima dele? Spielberg tem o senso
do espetáculo, mas quase sempre derrapa na história ou no seu irritante
didatismo. Coppola tem a sede do autor, a ousadia do "rebelde dentro do
sistema", mas curva-se freqüentemente às imposições do mercado. Scorsese
é um cineasta de grande técnica e sensibilidade apurada, mas sua temática
é limitada. Kubrick parece ser insubstituível. Fez extraordinários filmes
de guerra (realistas ou alegóricos), fez ficção-científica, fez épicos,
fez dramas históricos e intimistas. Sua versatilidade era equivalente
à sua coerência. Kubrick sabia ser engraçado e irônico, mas também sabia
falar muito a sério. Kubrick nunca estava satisfeito.
Alguém aí viu as primeiras imagens de seu último filme, Eyes
wide shut? Nicole Kidman, nua, na frente de um espelho, espera
a chega de Tom Cruise, que a pega pelas costas e... Não sei mais nada,
mas apenas este fragmento de cena basta para verificar que Kubrick ainda
tinha o que dizer, e diria a seu modo. Enquanto esperamos, ansiosos, o
resto do filme, vamos falar um pouco de uma de suas obras-primas. O filme
que fez uma ponte direta entre a década de 60 e o que parecia ser o futuro:
2001 - Uma odisséia no espaço
Sub-literatura. Para a maioria dos críticos, esta é uma boa maneira de
classificar contos e romances de ficção-científica. Nas inúmeras listas
de "melhores livros do século" não lembro de ter visto qualquer obra de
FC. Nem mesmo os nomes consagrados do gênero, como Isaac Asimov, Arthur
C. Clark, Robert Heinlein, Ray Bradubury e Ursula K. Leguin conseguiram
superar o desprezo dos críticos e um certo distanciamento do "grande público".
Eles têm leitores, mas estes são uma categoria específica, fiel e relativamente
limitada.
No cinema, contudo, a FC não é assim tão desprezada. Basta lembrar a boa
quantidade de filmes que têm o futuro como tema, tradição iniciada com
a "Viagem à lua", de Méliès, e continuada por "Metrópolis", de Fritz Lang,
chegando a "Solaris", de Tarkowski. Mas nenhum filme de FC é tão importante
quanto "2001 - Uma odisséia no espaço". E entre todas as razões para esse
posto máximo, vou lembrar de três. A primeira razão: cinematográfica.
Kubrick filmou a pré-história com grande realismo. Mas Kubrick também
filmou o futuro com verossimilhança admirável, numa época em que efeitos
especiais eram feitos sem computador, o que hoje parece ser uma impossibilidade
técnica. A passagem da pré para a pós-história é feita através de um corte
que está em qualquer antologia de cinema: o osso lançado pelo macaco se
transforma na nave espacial. Parece fácil. Difícil é ter a idéia pela
primeira vez e executá-la com eficiência.
A segunda razão: ontológica. O cinema tem muitas razões para existir -
proporcionar diversão aos espectadores, proporcionar trabalho para os
profissionais da área, proporcionar lucro para os produtores. Mas o cinema,
como qualquer outro meio de expressão artística, também tem razões que
estão acima das leis do mercado. O cinema pode, às vezes, investigar a
razão de ser do próprio ser humano. É o que faz "2001 - Uma odisséia no
espaço". Ao mostrar como o homem separou-se dos outros animais e evoluiu
tecnologicamente, a partir de um diferencial que ninguém explica muito
bem (o "monolito", ou "a mão de Deus", como quiserem), Kubrick pergunta
onde essa evolução vai nos levar. Voltaremos a uma encruzilhada existencial
(outro monolito; o encontro com outra civilização)? Seremos prisioneiros
da mesma tecnologia que nos libertou da animalidade, perdendo a luta evolutiva
para seres sem alma, mas superiores intelectualmente? Ou renasceremos,
transformados, para começar um novo ciclo, quem sabe agora livres do corpo
físico, que ainda é herança da pré-história?
A terceira razão: científica/cultural. O roteiro de Arthur C. Clarke e
do próprio Kubrick é uma aula de antropologia e de antecipação científica.
Mas sem didatismo calhorda nem simplificações grosseiras. Eles não estavam
interessados em fazer um filme que agradasse a todos. Pelo contrário:
coloque um adolescente fã de "Pânico 2" na frente de "2001" e ele provavelmente
vai achar um saco. É preciso ter sede de conhecimento para gostar de "2001".
É preciso ter fome de cinema para aproveitar todos os detalhes do filme.
Kubrick sabia que estava realizando um clássico e por isso levou o tempo
necessário para finalizá-lo de modo adequado (um ano e meio só para fazer
as animações espaciais).
Kubrick sabia que sua história era tão poderosa que, mesmo sem atores
conhecidos, teria apelo quase universal (descontados os fãs de "Pânico
2"). O que Kubrick não sabia é que, passados quase trinta anos do lançamento
do filme, ele continuaria atual, inclusive visualmente, dando a cada espectador
a chance de refletir sobre o passado longínquo, sobre o futuro distante
e, o mais importante de tudo, sobre si mesmo.
2001 - Uma Odisséia no Espaço (1968) Duração:
156 minutos (edição final). Direção: Stanley Kubrick. Roteiro:
Stanley Kubrick e Arthur C. Clarke. Elenco: John Ashley, Robert Beatty,
Keir Dullea, Gary Lockwood, Leornard Rossiter, William Sylvester, Daniel
Richter. Oscar de efeitos especiais.
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Carlos
Gerbase
é jornalista e trabalha na área audiovisual, como roteirista
e diretor. Já escreveu duas novelas para o ZAZ (A
gente ainda nem começou e Fausto)
e atualmente prepara o seu terceiro longa-metragem para cinema, chamado
"Tolerância".
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