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AMARCORD

de Federico Fellini

Eu me lembro. Foi no cinema Vogue (hoje uma padaria), na avenida Independência, em Porto Alegre. Assisti a "Amarcord" num domingo à noite e, no final da sessão, descobri que o cinema era muito mais legal do que eu pensava. Naquele momento (1974), foi uma descoberta individual, quase secreta, mas, poucos anos depois, percebi que toda a minha geração também passara pelas poltronas do Vogue e sentira o mesmo que eu.

Ali estava um filme tão perfeito, tão emocionante, tão extraordinário, que, de algum modo, ajudara a mudar a vida de muitas pessoas, que viam o cinema como algo distante, inalcançável, escrito sempre com aquelas letras brancas imensas de H-O-L-L-Y-W-O-O-D, e que agora podiam vê-lo como uma simples desfilar de lembranças de um italiano tão maluco quanto genial.

Foi uma descoberta tardia, é claro. Mas é preciso lembrar que a minha geração chegou à adolescência (momento de encontrar duas coisas fundamentais na vida: sexo e cinema) em plena ditadura, quase sem acesso às cinematecas, às mostras alternativos, à grande efervescência cultural que caracterizou o final dos anos 50 e todos os 60. Então, assistimos a "Amarcord" sem termos assistido a "A doce vida", "Oito e meio", "Noites de Cabíria", "Julieta dos espíritos" e aos demais filmes de Fellini. E pior: se me perguntassem, na época, o que era neo-realismo italiano, eu não teria a menor idéia. Rosselini? Visconti? Quem são esses senhores? Assim, mesmo considerando que muitos adolescentes porto-alegrenses não eram tão ignorantes quanto eu, dá pra afirmar que, para a maioria, "Amarcord" funcionou como uma faísca inesperada, como uma luz intensa, que nos obrigou a contrair as pupilas e enxergar o cinema de outra maneira.

Mas o que "Amarcord" tem de tão fantástico? Primeiro é preciso dizer o que NÃO tem. Porque, apesar de sermos adolescentes ignorantes, já tínhamos intimidade com a narrativa cinematográfica, já sabíamos, por exemplo, que um bom filme tinha que ter: (a) artistas talentosos, conhecidos, quase sempre bonitos, muitas vezes deuses e deusas que desciam do Olimpo apenas para filmar nos estúdios; (b) uma história com começo, meio e fim, capaz de emocionar ao espectador segundo uma progressão cuidadosamente planejada; (c) personagens fortes, divididos entre "mocinhos" (para quem torcíamos) e "bandidos" (a quem odiávamos). "Amarcord" não tem atores conhecidos. Mais do que isso: tem vários não-atores, gente comum, escolhida na rua pelo seu tipo físico.

"Amarcord" não tem história linear, com começo, meio e fim. Mais do que isso: além de fragmentada, a narrativa nem sempre é realista, pois está baseada em lembranças esparsas, imaginações, sonhos. "Amarcord" não tem mocinhos nem bandidos. Mais do que isso: o personagem principal, um adolescente chamado Titta, não está envolvido em nenhuma ação espetacular, a não ser que consideremos sua incursão entre os seios enormes da bilheteira uma ação espetacular. "Amarcord" não segue a cartilha do cinema americano. Segue a cartilha de Fellini.

Em contrapartida, "Amarcord" tem uma coleção completa de signos cinematográficos da mais alta qualidade. Tem um roteiro que "amarra" a trajetória de Titta com total segurança, criando nexos entre as cenas e dando a cada novo personagem (e são muitos) uma significação única e sempre forte. A mulher mais gostosa da cidade ("La Gradisca"), o vendedor ambulante, o acordeonista cego, a imensa charuteira, a freira anã, todos eles, mesmo com pouco tempo na tela, estão vivos, palpitantes, verdadeiros. Os roteiristas Tonino Guerra e Fellini sabiam que simplesmente "listar" lembranças não seria suficiente: era preciso criar um encadeamento lógico, em que a passagem do transatlântico funciona como um clímax, um orgasmo coletivo dos habitantes da pequena vila costeira.

"Amarcord" também tem uma das mais belas trilhas da história do cinema. Não estou falando de uma música, de um momento específico do filme. Estou falando da trilha original inteira, criada por Nino Rota, que, ou estava inspirado por Deus, ou fez um pacto com o diabo. Todas as músicas, além de apoiarem a imagem com total eficiência, funcionam independente do filme. E isso é muito raro, quase inexistente. "Amarcord" também tem fotografia inspirada, montagem sensível, direção de arte irrepreensível.

"Amarcord" é, à primeira vista, um filme simples, quase singelo, mas, na verdade, é um concerto sinfônico, em que cada um dos instrumentos cumpre modestamente seu papel. É a soma de todos esses timbres que fornece a essência mágica do produto final. Finalmente, não dá pra esquecer que "Amarcord", ao mesmo tempo que é um filme intimista, sobre um garoto que descobre a si mesmo, também é um filme político, sobre a Itália fascista, sobre a alienação de um povo, sobre a preguiça latina, sobre a acomodação dos seres humanos a regras estúpidas, formuladas por seres humanos igualmente estúpidos, mas muito poderosos, capazes de criar os eficientes signos fascistas e gerar líderes monstruosos como Mussolini.

"Amarcord" não será esquecido jamais, nunca sairá de moda, nunca parecerá velho (o que aconteceu com "Oito e meio", por exemplo). Eu lembro de "Amarcord". Eu lembro daquela sessão do cinema Vogue. Eu lembro que os seres humanos são capazes de criar emoção com pedaços de plástico e sal de prata. E gerar artistas geniais como Fellini.

Amarcord (1973) Duração: 127 minutos. Direção: Federico Fellini. Roteiro: Tonino Guerra e Federico Fellini. Fotografia: Giuseppe Rotunno. Música: Nino Rota. Produção: F.C.Produzione (Roma) e PECF (Paris). Elenco: Bruno Zanin (Titta), Pupella Maggio (sua mãe), Armando Brancia (seu pai), Nando Orfei, Ciccio Ingrassia, Magali Noel. Oscar de melhor filme estrangeiro.

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Carlos Gerbase é jornalista e trabalha na área audiovisual, como roteirista e diretor. Já escreveu duas novelas para o ZAZ (A gente ainda nem começou e Fausto) e atualmente prepara o seu terceiro longa-metragem para cinema, chamado "Tolerância".

 

 

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