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Gritos e Sussurros
de
Ingmar Bergman
Foi o próprio Ingmar
Bergman quem definiu Gritos e Sussurros como um filme que se aproxima
mais de um estado de alma do que propriamente de uma história a ser narrada
dentro dos princípios básicos do cinema. Deixar transparecer o que se
oculta sobre as formalidades das relações humanas é o objetivo dessa obra
reveladora. Não que a trama envolvendo a agonia de uma mulher em estado
terminal e de suas duas irmãs seja irrelevante. Muito pelo contrário.
É no limiar da vida que Bergman percebe o momento das grandes revelações,
aquelas abafadas pela moral, pelos costumes e pela religião.
Obra
de um autor maduro, o roteiro se apropria do universo das peças de Tchecov,
em especial Tio Vânia, destrinchando o complexo universo das relações
humanas, principalmente aquelas sustentadas por frágeis laços familiares. O
olhar desafiador é herança não apenas de Tchekov, mas também de Ibsen,
autor favorito e referência em todos os roteiros bergmanianos.
Realizado em 1973, Gritos e Sussurros talvez seja o filme que melhor
sintetiza as preocupações estéticas e temáticas do diretor de Morangos
Silvestres. Digo talvez porque uma década mais tarde, Bergman
se superaria com Fanny e Alexander, que além da densidade dramática é
uma espécie de retrato da infância do autor. Ambos os filmes são geniais,
completos, daí a razão de definir qual o mais sintético.
Em Gritos e Sussurros, a agonia da personagem Ágnes (Harriet Andersson),
que perpassa todo o filme, permite ao cineasta traçar um painel da impotência
humana diante da morte, mesmo dilema presente em filmes como O
Sétimo Selo e Os Comungantes.
O destino inexorável
lança os personagens à própria sorte, ou melhor, à falta de sentido de
suas vidas tacanhas, enquadradas na rigidez das normas sociais de um mundo
dominado pelos machos, símbolos moral protestante, que reprime a inventividade
e o desejo. Ingmar Bergman confia às suas personagens femininas, que
vivem uma espécie de exílio familiar, o caminho da salvação.
A morte de Ágnes, ainda que por alguns instantes, liberta o amor contido
de suas duas irmãs, a travada Karin (Ingrid Thulin) e a frígida Maria
(Liv Ullmann). Já para Anna (Kari Sylwan), a criada, a morte de Ágnes
representa a oportunidade de mostrar o humanismo e a compaixão intoleráveis
no ambiente repressivo abordado pelo filme. Mas Gritos e Sussurros é sobretudo
um filme que se utiliza do requinte estético para expressar sentimentos.
A fotografia do gênio Sven Nykvist em vermelho, branco e negro, além de
criar uma atmosfera onírica quase atemporal, ilumina instantes inesquecíveis
de amor, ódio e ternura. Nykvist, fotógrafo de grande parte dos filmes
de Bergman, reforça a idéia de clausura física e existencial, oferecendo
um belíssimo contraponto na sequência final, quando irmãs e criada correm
pela grama, num momento de paz, feminilidade e conforto, em que cessam
os gritos e sussurros
Mas seria este um filme incompleto sem a interpretação formidável das
três atizes principais, cujas máscaras procuram justamente traduzir o
indizível da alma humana. São elas, por sinal, a matéria-prima do cinema
bergmaniano. Huis clos feminista, Gritos e Sussurros pode ser visto
ainda como uma reverência àqueles que são, na verdade, a alma do
seu cinema - os atores, cujas imagens na tela ratificam a utopia cinematográfica
do triunfo da vida sobre a morte.
LEIA MAIS: Ingmar Bergman
Ricardo Cota, 33, é crítico de cinema
do Jornal do Brasil há oito anos, com passagens pelas revistas Cinemin,
Set, Tabu, Cinema e IstoÉ, além do jornal O Dia. Foi autor dos cursos
Bergman/Woody Allen: Dois Cineastas Face a Face; Huston/Coppola: Os jogadores;
e O Cinema Cantado, Breve História dos Musicais.
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