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Duas Inglesas e o Amor de François Truffaut Duas Inglesas e o Amor pode ser visto como um filme de transição na obra de François Truffaut. Recicla temas até então já abordados pelo autor e ilumina a sua cinematografia futura. Realizado em 1971, o filme aprimora as variáveis do amor a três do clássico Uma Mulher Para Dois (de 1961) e aponta caminhos para a viagem sem volta do amor não correspondido de A História de Adele H (de 1975). O roteiro, inspirado no romance de Henri-Pierre Roché, narra a história de paixão e desencanto do jovem francês Claude Roc (Jean-Pierre Leaud). Na virada do século, Claude é convidado, com o objetivo de aperfeiçoar o idioma estrangeiro, a passar uma temporada inglesa na casa de campo das irmãs Anne (Kika Markham) e Muriel (Stacey Tendeter). O contato com as duas jovens desperta um turbilhão de sentimentos confusos no personagem, que passa então a transitar como um outsider no mundo das mulheres. Anne e Muriel são concebidas como alma gêmeas. Juntas, elas expressam o sentido da feminilidade, que sempre encantou e intrigou Truffaut. Aproximam-se espiritualmente, mas distanciam-se pela forma de comunicação com o mundo. Anne é a mulher moderna. Versada em línguas estrangeiras, desloca-se pelo mundo com facilidade. A palavra direta e os atos objetivos dão o sentido da sua vida. Como artista, opta pela escultura como forma de expressão. Muriel, por sua vez, aparenta fragilidade externa. No entanto, é dona de uma profunda visão interior, conquistada através da literatura. Reclusa, transmite seus sentimentos por Claude citando obras de grandes autores ou redigindo cartas em que procura organizar o estado de turbulência interna. Enquanto Anne transpira abertura e sensualidade, Muriel parece fadada ao destino trágico por não ser capaz de lidar com os próprios sentimentos. Típica heroína do final de século. O romance entre os três personagens é a utopia fracassada de Duas Inglesas e o Amor. Anne, sabendo da fragilidade da irmã, empurra Claude para Muriel, abrindo mão de seu próprio envolvimento com o rapaz. O que seria um gesto de generosidade acaba se transformando numa porta aberta para a loucura. Enquanto Anne segue sua vida de independência e Claude (como sintetizado numa sequência espetacular) ginga entre uma e outra mulher, Muriel mergulha na insanidade. Para ela, assim como para a personagem de A História de Adele H., o amor não salva, envenena. Os encontros e desencontros de Claude, Anne e Muriel servem de pretexto para Truffaut desenvolver um dos mais finos comentários sobre três (novamente a trindade) de seus amores mais declarados: as mulheres, a vida e a arte. Através de sequências curtas, mas de grande valor simbólico, o cineasta elabora a tese de que só a linguagem pode disciplinar, e organizar, o desejo. Quem perde o poder de comunicação (como a Muriel que deixa de escrever cartas), morre. E Claude? Ele é o observador
estático, joguete das pulsões que o cercam. Só por intermédio da arte
consegue dar um norte à sua vida. Nesse sentido, o livro que publica
ao término do filme é a metáfora absoluta do esforço de Truffaut para
congelar sua visão da humanidade através do cinema. Em Duas Inglesas
e o Amor a arte é a redenção definitiva para a inexorabilidade do tempo.
Ricardo Cota, 33, é crítico de cinema do Jornal do Brasil há oito anos, com passagens pelas revistas Cinemin, Set, Tabu, Cinema e IstoÉ, além do jornal O Dia. Foi autor dos cursos Bergman/Woody Allen: Dois Cineastas Face a Face; Huston/Coppola: Os jogadores; e O Cinema Cantado, Breve História dos Musicais.
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