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ERA UMA VEZ NA AMÉRICA de Sergio Leone

Projeto gigantesco. Quase quatro horas de duração (na versão do diretor). Orçamento de trinta milhões de dólares. Cenários e figurinos de três épocas diferentes. Robert De Niro como ator principal. Era Uma Vez na América, o último filme de Sergio Leone, foi um desafio em vários sentidos. Os produtores, receosos de um fracasso no mercado americano, reduziram o filme para pouco mais de duas horas e aí provocaram o que temiam: baixas bilheterias e críticas ruins. Leone conseguiu, então, distribuir o filme na Europa na versão original, e tudo mudou: excelentes críticas e bom faturamento. Mais tarde, relançado nos cinemas dos Estados Unidos, em sua versão Era Uma Vez na América fez o sucesso que merecia. Um épico não poderia mesmo ter uma trajetória burocrática.

As virtudes cinematográficas de Era Uma Vez na América começam, é claro, pelo roteiro. Ao contar a trajetória de um grupo de criminosos judeus - e não italianos, como seria o esperado, considerando a origem do diretor -, Leone, que assina o roteiro ao lado de cinco outros italianos, constrói três narrativas paralelas, ilustrando a adolescência, a maturidade e a velhice dos personagens principais, Noodles (De Niro) e Max (James Woods). As passagens entre as épocas são sempre claras e bem amarradas dramaticamente, o que cria uma permanente tensão entre a nostalgia (a amizade "eterna" de crianças pobres que cresceram juntas) e o realismo (violência e morte como única forma de ascensão social).


A trama está centrada em Noodles (interpretado por De Niro nas versões "adulto" e "velho"). No início cronológico da história ele é um pequeno judeu sem qualquer perspectiva de vida, vivendo numa comunidade na periferia de Nova Iorque. Ao encontrar Max, outro judeu, igualmente sem futuro, formam a espinha dorsal de um bando tão violento quanto arrivista, que usará de todos os meios para conseguir dinheiro, belas roupas e belas mulheres. A inteligência de Noodles, aliada à total falta de caráter de Max, trarão sucesso ao pequeno grupo, apesar da oposição de outros criminosos do bairro. Até aí, nada demais. Os filmes sobre a Máfia são quase todos assim.

O que Leone consegue é oferecer ao espectador momentos de absoluta humanidade destes criminosos. Por exemplo: uma pequena prostituta judia, agenciada pela mãe, transa por dinheiro ou por um doce (ela é gulosa e gordinha). O mais jovem dos componentes do bando de Noodles, dez ou onze anos, quer transar pela primeira vez. Ele vai até a confeitaria e gasta cinco centavos (muito dinheiro para ele) comprando um doce grande, cheio de creme, com uma cereja em cima. Bate na porta da prostituta, e a mãe pede que espere um pouco, pois a filha está no banho. O pequeno gangster senta na escada. E olha para aquele embrulho, mais que convidativo. Leone estende a cena ao máximo, explorando o conflito entre os dois desejos do guri, um pré-adolescente na tênue fronteira entre a infância (o doce) e a maturidade sexual (a prostituta).

O guri começa passando a mão no creme derramado nas bordas do embrulho, tira a cereja, põe de volta, abre o pacotinho, namora o doce, etc. Leone, assim como amplia o tempo da morte em Era uma vez no Oeste, aqui estende o tempo do desejo e da dúvida. Ninguém, no cinema mundial, faz essa brincadeira como ele. Quando a prostituta finalmente aparece, é tarde demais: o guri já comeu o doce. Pouco depois, o destino violento desTe aprendiz de criminoso acaba sendo o fator decisivo da longa prisão de Noodles. Destas sutilezas, destas relações pouco convencionais em um filme de gangsters, é que surge a força épica de Era Uma Vez na América.

Leone olha para seus personagens com carinho, mas sem complacência. Em outra cena magistral, Noodles compra um restaurante inteiro, à beira-mar, apenas para oferecer um jantar à sua amada (a maravilhosa Elizabeth McGovern). Depois de uma conversa civilizada e romântica, Noodles estupra a mulher no carro, com absoluta crueza. Noodles não conseguirá nunca ser maior do que a sua origem violenta e suburbana. E os Estados Unidos não são exatamente assim? Por cima, a tradição cultural européia, o gosto pelo sofisticado, pelo belo. Por baixo, o arrivismo total, que passa por cima de qualquer código de ética, em busca do sucesso financeiro e do poder. E, nesta procura selvagem, nem os antigos pactos de amizade se sustentam para sempre.

A música de Ennio Morricone, colaborador antigo de Leone, é maravilhosa. A partir de dois temas básicos e recorrentes, vai pontuando toda a ação e aquecendo o espectador em fogo brando. Morricone, quando trabalhava com Leone, costumava compor pelo menos parte da trilha antes das filmagens, a partir do roteiro e de conversas com o diretor, que gostava de tocar as músicas para os atores durante os ensaios. Isso talvez explique a integração perfeita entre o tempo da atuação de De Niro e a cadência musical em muitas cenas. Morricone também usa canções pop, como "Yesterday", dos Beatles, para, didaticamente, ilustrar as passagens entre as três linhas de tempo do filme. E tudo funciona muito bem.

Era Uma Vez na América tem bela fotografia, montagem adequada e um elenco de coadjuvantes mais que competente: Treat Williams, Tuesday Weld, Burt Young, Joe Pesci e Danny Aiello, sendo que este último interpreta um engraçadíssimo chefe de polícia (chamado Aiello), que acaba de ter um filho, cuja identidade é embaralhada pela ganga de Noodles na maternidade, em mais uma cena antológica. Leone, um eterno insatisfeito com seus filmes, deve ter sofrido muito com a mutilação e o fracasso iniciais de seu último filme. Mas, quando a obra tem tantas qualidades, sempre acaba vencendo. Foi o que aconteceu para o épico monumental deste italiano criativo e inovador.

SERGIO LEONE (1929-1989)

Filho de um cineasta e de uma atriz, Leone iniciou sua carreira dirigindo filmes "épico/históricos", dentro de uma das mais prolíficas tradições do cinema italiano das décadas de 50 e 60. Fez Os Últimos Dias de Pompéia e O Colosso de Rodes. Até aí, nada demais. Ele era, com certeza, superior às dezenas de outros realizadores de sua época, que inundavam a península com aventuras de Maciste, Hércules e coisas parecidas, mas, se tivesse apenas continuado essa tradição, não estaríamos falando dele.

Em 1964, dirigiu Por um Punhado de Dólares, um western, e entrou para a história. Neste filme e nos quatro que se seguiram, Leone deu a forma definitiva a um gênero, o "spaguetti-western", que ultrapassou rapidamente as fronteiras da Itália e obteve distribuição mundial. Outros cineastas italianos embarcaram na onda, criando desde absolutas mediocridades e variantes de grande apelo comercial (como a série cômica "Trinity") até filmes razoáveis. Mas Leone ainda é o rei incontestável do "spaguetti", que atingiu o ápice com o seu clássico Era Uma Vez no Oeste.

O que é um bom "spaguetti-western"? Superficialmente, é um pastiche dos bang-bangs americanos, usando a mesma construção dramática e os mesmos personagens. Paisagens italianas inóspitas simulam o velho oeste americano. Quando o gênero "estourou", as boas bilheterias e o prestígio de Leone chegaram a trazer para filmar na Itália astros (ou semi-astros) de Hollywood, como Clint Eastwood, Charles Bronson e Henry Fonda. O "spaguetti" tornou-se tão popular no mundo inteiro que, por algum tempo, havia mais bang-bangs sendo rodados na Europa que nos Estados Unidos.

Contudo, basta prestar um pouco de atenção para verificar que os clássicos do gênero não se limitavam a copiar o original. Leone criou o seu estilo de narrar, que conjuga grande preocupação com a imagem, sempre forte, sempre épica, com preferência pelo cinemascope; manipulação radical do tempo cinematográfico, que é estendido muito além dos limites estabelecidos pelos americanos; e direção de atores que busca um minimalismo interpretativo: tanto os mocinhos quanto os bandidos matam e morrem sem erguer as sobrancelhas.

Leone poderia parar por aqui. Mas ele ainda tinha uma carta na manga, chamada Era Uma Vez na América. Projeto pretensioso, caro e financiado com dinheiro de Hollywood, teve duas versões (uma de Leone, com 3 horas e cinqüenta minutos, e outra imposta pelo distribuidor, com 2 horas e 20 minutos) e um lançamento comercial muito confuso (primeiro nos Estados Unidos e depois na Europa), mas acabou conquistando seu lugar na história do cinema. Antes de morrer, em 1989, estava preparando uma super-produção, com ajuda financeira da União Soviética, sobre o cerco de Leningrado, na Segunda Guerra Mundial. Mas, depois de revolucionar o western com Era Uma Vez no Oeste e criar um afresco impressionante dos Estados Unidos urbano com o policial Era Uma Vez na América, não conseguiu explodir para
sempre os filmes de guerra.

FILMOGRAFIA

Os Últimos Dias de Pompéia (1959)

O Colosso de Rodes (1960)

Por um Punhado de Dólares (1964)

Por Alguns Dólares a Mais (1965)

Três Homens em Conflito (1966)

Era Uma Vez no Oeste (1968)

Quando Explode a Vingança (1971)

Era Uma Vez na América (1983)


Carlos Gerbase é jornalista e trabalha na área audiovisual, como roteirista e diretor. Já escreveu duas novelas para o ZAZ (A gente ainda nem começou e "Fausto"). Atualmente finaliza seu terceiro longa-metragem, Tolerância, com Maitê Proença e Roberto Bomtempo.

 

 

 

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