MEU ÓDIO SERÁ SUA HERANÇA (THE WILD BUNCH)

de Sam Peckinpah

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Um bando de pistoleiros está roubando um banco. Em cima do prédio um grupo de caçadores de recompensa espera a saída dos bandidos para matá-los. Uma passeata da Liga da Virtude, formada por velhos, mulheres e crianças passa pela frente do banco. Os pistoleiros decidem se misturar à passeata para fugir. Saem do banco atirando e se misturam à pequena multidão. A partir daí, é um festival de mortes em câmara lenta, que não poupa nem velhos, nem mulheres (duas crianças se abraçam, as balas passam em volta delas, mas não há impacto). O filme está apenas começando, mas já vemos muito sangue correndo pela rua empoeirada, muita gente gritando e chorando, muita dor, muito cinema. Cinema. O western, desde que o cinema surgiu, parece ser um gênero que responde maravilhosamente às possibilidades narrativas do novo veículo. E a violência, desde as mortes ainda discretas em O Grande Roubo do Trem, de Edwin Porter (1903), é servida para o público em doses maciças.

Em Meu Ódio Será Sua Herança, Peckinpah segue a trilha aberta por Porter, John Ford, Raoul Walsh, Anthony Mann, George Stevens e tantos outros, mas acrescenta seu molho particular. E que molho! Para quem gosta de pratos refinados, de sabores sutis ou aromas delicados, Peckinpah certamente não é um bom cozinheiro. Ele manda ver na pimenta da câmara lenta, acrescenta alguns zooms nada ortodoxos (que, na mão de qualquer outro cineasta, seriam tremendamente indigestos) e costura algumas cenas com fusões lentas. Desde os créditos iniciais, o espectador sabe que a história, apesar de boa, é o que menos interessa. Peckinpah trabalha muito com a alternância de ritmos (cenas mais lentas, intercaladas com as mais agitadas) e com a alternância de enquadramentos (planos gerais, bem abertos, misturados com closes, bem fechados). O cineasta moderno que mais se aproxima dele é Sérgio Leone, mas este já flerta com o maneirismo e com elementos simbólicos, enquanto Peckinpah se mantém agarrado ao realismo.

Por isso, precisa de personagens completos, e não de tipos rasos, estereotipados. Escolhe atores pelo seu peso dramático, e não pela empatia fácil com o público. William Holden (Pike) e Robert Ryan (Thornton), ambos bem além dos 50 anos, com os rostos vincados e os corpos já descendo a ladeira, formam uma dupla de oponentes admirável. Na história (escrita por Walon Green; roteirizada por Green e Peckinpah) Pike e Thornton eram amigos e parceiros de bandidagem no passado, mas Thornton é preso, fica muito tempo na cadeia (onde é torturado) e tem uma chance de terminar a vida em liberdade, contanto que cace e capture Pike, um ladrão também no ocaso da vida, mas ainda muito ativo. Portanto, Meu Ódio Será Sua Herança não é exatamente uma luta entre os "bons" e os "maus", e sim uma reflexão sobre papéis assumidos à força. Os bandidos, teoricamente "maus" (e mesmo que demonstrem sua brutalidade várias vezes), têm seu código de ética e protegem mexicanos pobres em dificuldades. Os executores da lei, teoricamente "bons", são liderados por um pistoleiro e não passam de uma amontoado de estrume humano. Thornton não esconde de ninguém que preferiria estar do outro lado.

Há um tom nostálgico no filme. Além dos personagens serem velhos, o próprio "velho oeste" está nas últimas. O bando de Pike parece cansado demais para continuar roubando. Os cavalos estão prestes a perder seu lugar para os carros. As pistolas, para as metralhadoras. Os heróis, para os empresários. Peckinpah filma esse final dos tempos com respeito e alguma tristeza, mas não perde oportunidade de sacudir o espectador com mortes espetaculares, como se a violência fosse sempre a mesma, vestindo apenas um figurino mais contemporâneo. Algumas cenas são bastante chocantes. Uma mulher dispara e fere um dos pistoleiros. Ele se volta, grita "vadia" e a enche de chumbo. Num western bem comportado, uma mulher jamais seria morta dessa maneira. Quando os pistoleiros, já sabendo que estão perdidos, assumem a metralhadora, fazem questão de levar para o inferno muita gente com eles. Vi "Meu ódio será sua herança" em vídeo, o que certamente ameniza sua violência. Mas dá pra imaginar que, numa cópia 70mm, aquele monte de cadáveres deve cheirar mal pra burro.

Peckinpah fez outros westerns (inclusive o ótimo Pat Garret & Billy The Kid), mas usa, em Meu Ódio Será Sua Herança, toda a sua coleção de efeitos (visuais e temporais) e fixa seu estilo, que será depois imitado por cineastas menos talentosos. Recentemente, em Matrix, que não tem carências de talento, algumas cenas parecem ter sido inspiradas na pancadaria de Peckinpah. Façam uma experiência no vídeo-clube, colocando as capas das duas fitas lado a lado. São bem parecidas, mostrando os "heróis" dos filmes carregando quilos de armas, como se dissessem para o espectador: "Quando nós dispararmos, vai morrer muita gente". É claro que Matrix é um filme adolescente e quase otimista, enquanto Meu Ódio Será Sua Herança é um filme maduro e cético. Em Matrix, os bandidos, elegantes, não têm sangue, e os mocinhos, mais elegantes ainda, têm sangue azul. Em "Meu ódio será sua herança", tanto bandidos como mocinhos, tanto americanos como mexicanos, tanto os homens quanto as mulheres, têm mais uísque que sangue nas veias. Eles derrubam mais garrafas que inimigos. O álcool agudiza a agressividade e, desde a Grécia antiga, é causador de conflitos mortais.

Machista (as mulheres não têm nome e são quase todas prostitutas) e violento (não consegui contar o número de mortes, mas são mais de uma centena), Meu Ódio Será Sua Herança, pode até ser questionado eticamente, mas é uma experiência cinematográfica completa, que brinca com a expectativa do público, oferece o que ele quer, mas não abre mão da autoria e da invenção. Antes da mortandade final, causada pelo assassinato a sangue-frio do pistoleiro mexicano, executado por um general bêbado e louco, o filme pára, como se perguntasse: "E aí, vamos ser sensatos? Vocês sabem que, se os tiros começarem, vai morrer um monte de gente." E todos se olham, se medem, se perguntam e depois respondem: "Não temos outra saída. Não sabemos viver outra vida". E partem para a fuzilaria sem pensar mais. Eles morrem, e nasce mais um clássico do cinema.

SAM PECKINPAH (1926-1984)

Neto de um cacique índio, Sam Peckinpah abriu seu caminho no mundo do cinema através da TV, onde dirigiu uma série de bem -sucedidos westerns. Estreou na tela grande em 1961, com "O homem que eu devia odiar", mas começou a deixar sua marca no gênero com "Pistoleiros do entardecer" (1962), em que introduz seu sub-tema favorito: o ocaso de homens rudes e selvagens, que não conseguem se adaptar aos "novos tempos", em que as forças econômicas são mais fortes que a boa pontaria e as grande amizades. A tragédia da inadaptação está presente em "Meu ódio será sua herança" e "Pat Garret & Billy The Kid", seus trabalhos mais importantes.

Peckinpah muitas vezes é reduzido a um esteta da violência, o que é uma grande injustiça. O sangue jorrando de grandes feridas abertas por balas, os corpos caindo em câmara lenta e os montes de cadáveres que se acumulam nas ruas são realmente imagens marcantes, que identificam um autor e criam um mito, mas é preciso reconhecer que ele sabia contar uma história com precisão narrativa e, principalmente, que sabia dirigir atores, extraindo deles, muitas vezes, atuações memoráveis, como Warren Oates em Tragam-me a cabeça de Alfredo Garcia (1974), William Holden em Meu Ódio Será Sua Herança e Kris Kristofferson em Pat Garret & Billy The Kid (1973).

Depois do ápice profissional, obtido na década de 60 e início dos anos 70, Peckinpah acaba se perdendo em obras menores, certamente impostas pelos estúdios, como "A Cruz de Ferro" e "Comboio". Sem uma história forte e sem a possibilidade de brincar com a narrativa, só resta na tela a sua grande coleção de efeitos especiais de violência, que podem levar o espectador a considerá-lo fascista. Mas quem conhece seus grandes filmes sabe: por trás daquela câmara lenta, que estende a morte até o limite do insuportável, está alguém que reflete sobre as origens da violência humana, às vezes inevitável, às vezes boba, às vezes torpe, às vezes heróica. Mas sempre muito dolorosa.

Filmografia

The Deadly Companions (O Homem que Eu De-via Odiar, 1961);

Ride the High Country (Pistoleiros do Entardecer, 1962);

Major Dundée (Juramento de Vingança, 1965);

The Wild Bunch (Meu Ódio Será Sua Herança, 1969);

The Ballad of Cable Hogue (A Morte Não Manda Recado, 1970);

The Straw Dogs (Sob o Domínio do Medo, 1971);

Junior Bonner (Dez Segundos de Perigo, 1972);

The Getaway (Os Implacáveis, 1973);

Pat Garret and Billy the Kid (Pat Garret e Billy the Kid, 1973);

Bring Me the Head of Alfredo Garcia (Tragam-me a Cabeça de Alfredo Garcia, 1974);

The Killer Elite (Elite de Assassinos, 1975);

Cross of Iron (A Cruz de Ferro, 1977);

Convoy (Comboio, 1978);

The Osterman Weekend (O Ca-sal Osterman, 1984).