AÇÃO ENTRE AMIGOS

RAPIDINHO

A primeira cena, em que vemos um helicóptero sobrevoando o oceano, com uma fotografia perfeita e um clima crescente de suspense, já deixa o público na ponta da cadeira. E lá vem mais um filme com o estilo de Beto Brant: ritmo pouco convencional, personagens brasileiros até a medula, câmara sempre ágil, narrativa límpida, mas nunca óbvia. A partir de seus curtas, e passando pelo excelente "Os matadores", Beto conseguiu imprimir definitivamente em "Ação entre amigos", antes de chegar aos quarenta anos, o que pode haver de mais precioso para um cineasta: a marca de seu estilo pessoal. E o melhor de tudo é que ele não transforma essa marca em tatuagem explícita, em logotipo a ser iluminado por holofotes em cada cena, e sim numa sutil sedução do público, seu alvo explícito, que acompanha a história com facilidade, mas que recebe, ao mesmo tempo, uma reflexão sobre a história do país em que vive.

AGORA COM MAIS CALMA

"As saídas das ditaduras só podem se realizar, ao menos quando são pacíficas, graças a uma sábia dosagem entre memória e esquecimento." A frase do escritor chileno Jorge Edwards, publicada no jornal espanhol "El País" e transcrita por Clóvis Rossi na Folha de S.Paulo deste domingo, poderia ser utilizada no cartaz de "Ação entre amigos", de Beto Brant. O que se discute no filme é bem simples: devemos ignorar tudo o que aconteceu num período político de exceção, garantindo um presente de convivências e um passado de tolerâncias? Ou devemos revolver os crimes hediondos e punir seus personagens fétidos, buscando uma "justiça" talvez impossível, mas que dê ao presente uma dignidade mínima? Em outras palavras: qual é "sábia dosagem de memória e esquecimento" para a pós-ditadura?

Jorge Edwards está escrevendo sobre o destino de um velho general chileno, enquanto Beto está filmando o destino de quatro terroristas brasileiros que reencontram seu velho torturador. Mas, no fundo, a questão é a mesma. E é antiga pra burro. Quando Deus resolveu salvar alguns poucos fiéis "puros" que viviam em Sodoma e Gomorra, mandou que eles saíssem correndo e, mesmo que ouvissem as maiores barbaridades, não olhassem nunca para trás. A mulher de Lot, contudo, que resistira por longos anos à tentação da luxúria, não resiste à tentação da curiosidade. Ela olha para trás, procurando, entre o fogo e destruição, uma imagem qualquer que lhe servisse de lembrança, de memória, de humanidade. Porque, para um animal ser humano, ele precisa ter memória.

Beto Brant constrói quatro personagens, todos convincentes e muito bem interpretados por atores que não vemos na TV (o que ajuda muito na verossimilhança do filme). Três deles preferem esquecer o passado. Mas o quarto não consegue esquecer. Diz que lembra, a cada dia, o que sofreu há mais de vinte e cinco anos. E, quando tem a oportunidade de zerar as contas, acha que esta é a única maneira de pacificar sua memória e voltar a viver plenamente. "A morte e a donzela", filme tedioso de Roman Polanski, tem um tema semelhante, mas se perde em devaneios psicológicos de segunda categoria. Brant vai direto aos dois pontos essenciais:

1) o filho-da-mãe torturador deve morrer ou não?
2) essa violência tem mesmo um caráter regenerador?

"Ação entre amigos" responde com tiros, mortes, acidentes de carro, suspense e um final aterrador. O único senão do filme - alguns diálogos demasiado óbvios dos terroristas quando jovens, emoldurados por música romântica - deve ser creditado à preocupação de Brant com o pleno entendimento da trama por um público sem memória nem informação sobre o nosso passado recente. Mas nada que se compare às evidentes bobagens simplificadoras de "O que é isso, companheiro?". E o mais importante: em "Ação entre amigos" discute-se os escrúpulos dos torturados, e não do torturador. Todo mundo civilizado concorda que Pinochet deve pagar pelo que fez; o que se discute é onde, como e qual as conseqüências desse ajuste do presente com o passado. Ninguém quer cometer o erro da mulher de Lot.

Em menos de oitenta minutos de projeção, "Ação entre amigos" é uma aula de cinema nacional e de história brasileira. Se, como todos nós, Brant ainda não encontrou a tal "sábia dosagem" entre memória e esquecimento, com certeza está encontrando a dosagem certa entre compromisso com o público e preocupações autorais. Ele não vai salvar o Brasil nem curar nossas feridas (basta olhar para quem posa de "democrático" no Congresso Nacional), mas está entre aqueles que tem a responsabilidade e a capacidade de salvar o nosso cinema.

Ação entre amigos (Brasil, 1998). De Beto Brant. Com Leonardo Villar, Zé Carlos Machado Cacá Amaral e outros.

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