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FELICIDADE

RAPIDINHO

Coleção de seres esquisitos? Relatório de anomalias e taras? Conjunto de ações socialmente reprováveis? Galeria de tipos inesquecíveis? Se você já ouviu ou leu essas definições para "Felicidade", atenção! Não é nada disso! O filme é apenas uma descrição da vida de alguns seres humanos de verdade, tão comuns como eu e você, captados pela lente desumanamente honesta de Todd Solondz. Ah, você achou aquelas pessoas esquisitas, anormais, taradas, socialmente reprováveis e inesquecíveis? Tudo bem. Mas você já analisou honestamente a sua família?
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AGORA COM MAIS CALMA

Como explicar um filme de exceção, um filme que não faz questão de seguir as regras, um filme que (ainda) consegue surpreender seus espectadores? Talvez seja bom começar do começo, pelo primeiro crédito que surge na tela, que é o da produtura "Good machine", de Nova York. Trata-se, portanto, de um filme americano, mas não realizado pelos estúdios de Hollywood. Isso explica muita coisa. Todd Solondz é, hoje, o que foram Jim Jarmusch e Hal Hartley há dez anos: desbravadores da linguagem, cineastas que fazem da palavra "independência" não uma licença para experimentalismos cósmicos estéreis, e sim a chave para uma liberdade temática e narrativa que enche de prazer ao cansado público do nosso velho e decrépito planeta.

Enquanto Kubrick construiu uma descida quase trágica ao mundo dos instintos, dos desejos e dos sonhos da classe que domina o mundo, Solondz prefere levar o espectador a um passeio quase descompromissado pelo cotidiano da classe-média, que também tem instintos, desejos e sonhos, mas não gasta tanto tempo para eles, já que precisa pagar o aluguel e dar banho no cachorro. Os conflitos, em vez de ganhar proporções épicas, permanecem na esfera da comédia e do non-sense.

Desde a genial primeira cena, que mostra um relacionamento acabando, a intenção é clara: felicidade é artigo raro, quase inacessível, e procurá-la é um exercício que pode facilmente ser ridículo. E quanto mais forte e determinada for a procura, mais ridícula será. Entre os vários personagens, o que mais se destaca (pela raridade com que o cinema se ocupa desse tipo de comportamento) é o pai de família pedófilo. Suas engraçadíssimas conversas com o filho, sua incapacidade de suprimir - ou pelo menos minimizar - sua preferência sexual, sua resignação estóica ao destino, tudo está roteirizado, filmado e montado com uma coragem incomum.

Nesses tempos em que Kubrick (morto ou vivo?) coloca efeitos digitais para acalmar os puritanos, e a nudez de Kevin Costner (logo quem!) é cortada para baixar a censura, é uma benção assistir a um filme que, se aceitasse esse tipo de influência, não seria mais um filme. "Felicidade" é a vingança suprema do cineasta ao censor, que não pode apontar essa ou aquela cena como "inconveniente" ou "pornográfica". O filme todo é inconveniente e, mesmo sem imagens explícitas, essencialmente pornográfico.

A eficiência de "Felicidade", porém, tem motivos totalmente corriqueiros: história legal; bons atores, em desempenho homogêneo; e uma decupagem esperta, inovadora sem ser pedante (defeito que tem atingido alguns caras bacanas, como os irmãos Cohen em "O grande Lebowsky"). O longo plano em que o gordo asqueroso de óculos vai estendendo lentamente sua mão sobre o sofá, na direção da vizinha maravilhosa, embalado por uma música romântica, é um bom exemplo da capacidade de síntese que apenas o cinema tem: imagem e som a serviço da arte, da expressão mais sincera e preciosa dos sentimentos humanos, quase sempre inefáveis, mas ainda ao alcance da mão. Assim como a felicidade. Mas esta continua um pouco mais longe.


Felicidade (Happiness, EUA, 1998). De Todd Solondz.

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Carlos Gerbase é jornalista e trabalha na área audiovisual, como roteirista e diretor. Já escreveu duas novelas para o ZAZ (A gente ainda nem começou e "Fausto"). Atualmente finaliza seu terceiro longa-metragem, Tolerância, com Maitê Proença e Roberto Bomtempo.

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