Busca

Pressione "Enter"

Cobertura completa Sites de cinema Grupos de discussão Colunistas Os melhores filmes Notas dos filmes Todos os filmes Roteiro de cinema O que está passando no Brasil


FESTA DE FAMÍLIA

RAPIDINHO

Papai faz 60 anos. Mamãe está contente. A família toda se reúne - avôs, avós, tios, primos - numa casa bonita para comemorar. Chegam os três filhos vivos (uma filha morreu há pouco). A festa transcorre sem incidentes maiores até que o filho mais velho - e, aparentemente, o mais bem sucedido - diz que seu pai, sentado à cabeceira da mesa, o estuprava, junto com sua falecida irmã gêmea, com o consentimento da mãe. Beleza de sinopse.

Poderia ser um filme de Bergmann, cheio de grandes silêncios e poderosas simbologias cromáticas. Poderia ser um filme de um jovem diretor americano, como Todd Solondz, cheio de piadas politicamente incorretas e grande sacadas narrativas. Mas Festa de Família é, antes de tudo, um filme dinamarquês com certificado Dogma 95, provando que aquelas regras aparentemente idiotas, que tiveram o grande mérito de devolver a discussão estética ao ato de fazer cinema, podem também ser a origem de um filme poderoso, surpreendente e cheio de energia.

Ao contrário de Hollywood, que constrói festas para os olhos e empanturra os estômagos dos espectadores com pratos-feitos cheio de colesterol, Thomas Vinterberg fez uma festa para nossos corações e mentes, abrindo mão de todos os condimentos desnecessários e deixando que o verdadeiro sabor do cinema escorra pelas nossas gargantas.

Nem sempre esse sabor é doce, mas a comida certamente faz bem para a saúde. Eu recomendo, pelo menos uma vez por mês. É claro que continuaremos nos atrolhando com as porcarias entupidas de colesterol, mas morreremos um pouco mais tarde, um pouco mais felizes e um pouco mais saudáveis.

AGORA COM MAIS CALMA

Nos anos 70, o rock´n´roll (que nasceu vigoroso, rebelde e transgressor, nos anos 50) tinha virado música erudita, feita por instrumentistas virtuoses, que construíam sinfonias românticas, épicas ou pretensamente psicológicas. O tal "rock progressivo" tinha levado o rock a um ponto de grande apuro técnico e sofisticação melódica, mas também tinha retirado dessa forma musical o que ela tinha de melhor: o desrespeito à estrutura, a liberdade criativa, a energia simples e sincera de quatro garotos desempregados que usavam o barulho de seus instrumentos para declarar que o mundo não servia para eles. Coisa adolescente, é claro. Mas coisa verdadeira e empolgante, pelo menos para quem não é um velho admirador de Ray Connif e afins.

Sabemos que há uma grande distância entre Ray Connif e as grandes bandas dos 70 - como Pink Floyd, Genesis, Yes, Emerson, Lake & Palmer -, mas é bom não esquecer que, na esteira desses grupos realmente talentosos, a indústria fonográfica nos empurrou milhares de bandas "progressivas" horríveis, de quem ninguém lembra mais. O cinema, neste final de século, principalmente o feito em Hollywood, atravessa mais ou menos a mesma crise de identidade do rock setentista: o mercado não reclama, o público aumenta, os críticos se maravilham com a perfeição tecnológica do novo "Star Wars", e com o realismo impressionante de "O resgate do soldado Ryan". Mas cadê a energia, cadê a transgressão, cadê a surpresa, cadê a sensação de que é possível mudar o mundo com um acorde dilacerante de guitarra ou um radical movimento de câmara?

Esta sensação está de volta em "Festa de família". O Dogma 95 é o punk-rock do cinema. Vinterberg é um Johnny Rotten com todos os dentes, nórdico, provavelmente de classe média, bem vestido e bem relacionado com a mídia, mas seu filme é tão gloriosamente podre quanto "Never mind the bollocks". Câmara na mão, decupagem primitiva (mas eficiente), iluminação natural, fotografia granulada, cortes inusitados, produção minimalista e, principalmente, uma vontade explícita de não seguir as regras, de não adequar-se ao que o mercado afirma ser o "certo". Mais do que isso. Vinterberg não está sozinho. Ele é parte de um movimento estético, como foi o punk-rock. E o Dogma 95é o fanzine desse movimento, simples e ingênuo, quase reproduzindo aquelas palavras de ordem de 77: "Abaixo o sistema", "Morte aos rock-stars", "Duas notas é o suficiente: pra que usar as outras?"

O futuro do Dogma 95 é o mesmo do punk-rock: depois de cuspir no sistema, ser absorvido, deglutido, remodelado e vendido por ele. O Dogma 95 vai virar corte de cabelo em novela da Globo, piercing no nariz de top-model, tatuagem em chiclé, clip da MTV. Mas alguma coisa restará de sua energia primitiva, carregada por um cineasta desconhecido e independente, ou por um cineasta famoso e cheio da grana, que construirá uma cena inteira de seu filme baseada no que viu e aprendeu no filme do seu colega pobre e anônimo. Assim caminha a humanidade, assim caminha o cinema. Lembram de como "Easy rider" era transgressivo e perigoso?

Um advertência final: Vinterberg é maior que o Dogma 95, porque, além de dogmático é inteligente. Nada mais irritante que burros seguindo dogmas. E eles logo estarão aí, justificando seus filmes relaxados, com histórias ruins e atores mal dirigidos, através da filiação a esta corrente punk-cinematográfica. Quem viu "Festa de casamento" sabe: o roteiro é bom, os personagens são bem construídos, os atores estão maravilhosamente convincentes, a montagem não tem tempos mortos, o som é profissional e a produção, apesar de minimalista, é perfeita: não sentimos falta de dinheiro, nem de trabalho. Enfim, é legítimo punk-rock, bem gravado, com a energia suficiente para superar todas as limitações técnicas e melódicas e oferecer uma noite muito divertida para quem curte. Quem não curte que fique em casa, ouvindo Ray Connif ou a última picaretagem do Pink Floyd.


Festa de Família (Dinamarca, 1998). De Thomas Vinterberg.

Dê sua opinião ou cale-se para sempre

Carlos Gerbase é jornalista e trabalha na área audiovisual, como roteirista e diretor. Já escreveu duas novelas para o ZAZ (A gente ainda nem começou e "Fausto") e atualmente prepara o seu terceiro longa-metragem para cinema, chamado "Tolerância".

Índice de colunas.


Copyright © 1996-1999 ZAZ. Todos os direitos reservados. All rights reserved.